Enseada Branca é um lugarejo
que começa no deserto e termina no mar. De um lado o inóspito e do outro a vida
pujante, entre um e outro vivem os habitantes do local. Para os lados do
deserto temos o Sol inclemente e as areias escaldantes onde tudo é bem visível
e claro, já para os lados do mar, tudo permanece imerso em seus insondáveis
mistérios. Porém, aos poucos a cidade vai sendo engolida pelas areias, mas o
fato não parece importar muito aos seus habitantes. Neste livro, mais uma vez,
lanço mão do expressionismo com que construo minhas obras, porém desta vez
mudei algumas coisas: deixei de lado a narrativa subjetiva do protagonista e me
fixei mais nos diálogos. Decidi que esta história deveria fluir de modo
diferente, deixando que os próprios personagens a conduzissem com suas respectivas
dinâmicas. Sendo assim, tudo se desenvolve com rapidez e a trama flui solta
através de diálogos não muito extensos e acontecimentos que vão se interpondo
de forma a fruir num ritmo fácil. A intenção é contar uma história compacta,
intensa, vívida, porém de forma corrente. Também uso de um humor com tinturas
picarescas para temperar os sinistros acontecimentos em Enseada Branca, para
que a narrativa não adquirisse ares carrancudos, uma vez que se passa, para o
bem e para o mal, em uma praia. A história
gira em torno de um rapaz tido como pária na pequena cidade, que é [in]
justiçado e trucidado pelos homens da localidade e tem seu cadáver jogado ao
mar. O problema é que ele volta, ele sempre volta, por mais que caia em novas
emboscadas e tenha seu corpo dilacerado e jogado novamente nas vivas águas. E
volta cada vez mais forte e sinistro, mais consciente, mais sagaz, mais
irreverente. Seu nome é Giano Daemon, seu apelido: o faroleiro. Este apelido se deu pelo fato do homem habitar as
ruínas do farol abandonado da enseada.
Aos poucos então uma estranha mudança vai acontecendo com o faroleiro,
pois sempre que volta, vem mais parecido com um tubarão. Aos habitantes de Enseada Branca só resta o
medo de seu próximo retorno, e de sua terrível vingança. Abordo como sempre,
através da metáfora do romance, o eterno balanço entre esse tal ‘Bem’ e esse
tal ‘Mal’ e suas respectivas relatividades, bem como o consciente e
inconsciente, e seus mananciais. Essas coisas sempre me fascinaram. O que é
compreendido e o que não é. O que é visível e o que não é. O que é tangível e o
que não é. E aqueles que se submetem às hipocrisias cotidianas e os que não se
dão a isso. A Sociedade e suas crenças, seus paliativos, seus confortos e
consolos; sua mentalidade desvirilizada e incorpórea, porém violenta. O ódio
aos instintos. O ódio à Natureza que não se deixa domesticar [de resto, o ódio a qualquer coisa que não
se deixe domesticar, incluindo aí, pensamentos...]. A teoria, a
conformidade, a Lei conveniente, o útil, o fantasmagórico versus esse demônio,
diabo, capeta, coisa ruim, cão, chamado ‘corpo’.
Um corpo só aceito se esquizofrênico, dividido entre o que verdadeiramente
sente e o que ficou pactuado para sentir. O ‘status
quo’ só tolera, e cada vez mais, a aparência externa do corpo, desde que
dócil, a interna é temida por ser intangível à visão. O corpo, emissário
risonho, dançante e pensante da indomável e irreverente Natureza é excomungado,
rechaçado, ‘persona non grata’ nas
coisas tidas como ‘elevadas’. Talvez para sempre seja
assim, o corpo caluniado e responsabilizado por todos os males do mundo; talvez
se tente convencer de que sem ele tudo estaria moralmente salvo. Mas a Natureza
é a própria vida! Sendo assim, que todas as providências sejam tomadas por toda
a eternidade [eis uma de suas inimigas
mortais, com o perdão do trocadilho] para eliminar o corpo e seus
instintos, seja através das mais variadas doutrinas e filosofias, seja na
estranha ‘felicidade’ de enaltecer
sua não-presença, seja isso ou aquilo. Mas tudo sempre será em vão com relação
a esse impertinente. Ele volta, ele sempre volta...
Em tempo: este é um livro
sobre deserto, mar, gente, e tubarões. Não necessariamente nesta ordem.
Roberto Axe
Porto Alegre, 03 de setembro de 2014.
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