O que pode incomodar mais do que uma mosca? Ninguém sabe de
onde vieram e nem para onde vão as moscas, só sabemos que defendemos, feito
soldados, a superfície de seja lá o que for para que o nojento inseto nunca
pouse em cima. Matar moscas é a coisa mais comum do mundo, todos matam moscas,
todos odeiam moscas, no entanto esses bichinhos estão vivos e têm todo o
direito à existência, por que não? Então de onde vem tanto ódio? Bem, eu
suspeito que o asco que sentimos não é pela mosca em si, mas por não sabermos
onde o ‘vil’ inseto colocou suas patas antes de vir pousar em nossa comida. A
mosca é uma espécie de emissário do desconhecido, um pequeno diabo, isso nos
assusta. Mesmo doenças mais graves podem ter na mosca seu sinistro agente, e
isso é intolerável e assustador. No entanto, se criássemos uma mosca de forma
segura, sabedores de que nunca pousou em lugares infectos, possivelmente não
ligaríamos a mínima se ela passeasse tranquila sobre nosso pão. Pois bem. Em
uma Sociedade em que se queira uniformizar a mentalidade das pessoas isso não seria
diferente, me parece. Neste livro vamos acompanhar uma mosca, ou melhor, um
homem que bem poderia ser uma. A estória que agora começa é sobre um sujeito
que acorda de um rápido cochilo no metrô sem lembrar-se de quem é nem de onde e
como vive. Seu nome é Leonardo Daemon. Leonardo, ou simplesmente Léo, quando
percebe que está com amnésia, resolve não contar a ninguém e decide transformar
seu infortúnio em uma grande aventura. Porém, vai percebendo que nem tudo foram
flores em sua vida pregressa e enquanto vai desvendando sua antiga identidade,
vai dando-se conta de que é apenas isso: uma identidade, ou se preferir, um
número, uma estatística. Não bastassem as surpresas que vai encontrando em sua
vida particular, aos poucos vai percebendo que vive em um mundo idealizado para
que as pessoas apenas circulem créditos e mantenham suas mentes nos
entretenimentos. A Arte foi banida e a subjetividade é crime. No entanto constata que as pessoas são
totalmente indiferentes a uma condição que parece mesmo ter lhes roubado as
próprias vidas. Livre para pensar, pois ninguém sabe de sua amnésia, Léo vai
descobrindo tudo que o cerca e passa a desvendar o admirável truque que os
comandantes do espetáculo impetraram como Sociedade perfeita. O problema é que
todos esperam a volta do “Inimigo”, que ninguém sabe quem é, mas que poderá
botar a perder aquele mundo asséptico, porque trará de volta a terrível, suja e
banida subjetividade. Mesmo nos guetos, onde vivem os que ficaram de fora, tudo
segue pacífico graças ao profeta oficial do esquema, que promete que os bem
comportados irão, depois da morte, para um paraíso em que, finalmente, poderão consumir
de tudo à vontade. Tudo perfeito para todos, menos para Leonardo, que começa a abrir
os olhos e ver em tudo isso uma grande armadilha. Seria Leonardo Daemon o
inimigo?
Longe de querer criar um romance distópico, eu quis apenas
contar uma história de revolta. O Humano tendo de abandonar suas mais altas
aspirações para caber nos interesses de terceiros que o pesam e o calculam por
sua utilidade. O corpo congelado e plastificado nos modismos, os instintos
arrefecidos, a mente distraída, o pensamento como algo perigoso. Bonecos frios
inoculados nas mentes menos criativas para que não pulem os muros que fazem
divisa com o Infinito. O prazer das descobertas nos mergulhos mais
assustadores, tidos pelos arautos do medo como coisas demoníacas. Tudo bobagem.
Somos o que pensamos e pensamos porque somos. Sem ‘filosofismos’. Aquilo que é usado para assustar as
mentalidades simples cheira a uma grande picaretagem, são fantasmas
assalariados manobrados por títeres inescrupulosos. Qualquer um que descubra
que é livre para pensar o que quiser o faz sempre demolindo mundos, pois são os
cacos desses mundos que são catados pelo chão por figuras fantasmagóricas
enquanto xingam a impertinência do pensador. A cada mundo que se espatifa morre
um milhão de fantasmas. Porém, sempre haverá os monstrengos que, feitos
lixeiros metafísicos, juntam o que sobrou para montar totens monstruosos visando
afastar incautos de caminhos que julgam proibidos. Enganam-se redondamente, pois
o criador, por sua óbvia condição, cria também os caminhos, portanto nunca
passa por ali. Só os que não têm condições de voar arrastam seus pés – ou
joelhos - por esses tenebrosos lugares. Pois que nunca cheguemos à condição
humana miserável que a história contada neste livro nos remete. Seria então a
morte predominando sobre a vida, uma morte enfeitada, perfumada, colorida,
ufanista; tão bem engendrada que ninguém se daria conta do ardil. Só os mais
atentos perceberiam estar a serviço da própria escravidão, os demais seguiriam
felizes e bem entretidos. Voltando à mosca, quem sabe só ela, vinda de
sinistros e sombrios lugares possa trazer em suas patas sujas o desassossego, o
questionamento... a liberdade! Sim, a despeito do horror que causaria aos
acomodados, o ‘demoníaco’ emissário poderia trazer a salvação no exemplo de seu
voo, no destemor de seus pousos. A superfície branca e lisa pela qual ela anda
não pode nada, e julga ter a força justamente em sua imensidão e brancura, se
me permitem o pequeno delírio. Caramba! Essas coisas parecem tão longe de nós
que até nos causam certo conforto. Ainda
bem que a aventura que está prestes a se descortinar aos olhos do caro
leitor[a] nunca aconteceu, então, por enquanto podemos comemorar: enfim é só
uma história, não é mesmo? Que bom. Mesmo que de vez em quando algum roçar de
desespero nos acometa e sintamos uma espécie de agonia pela insuficiência das
coisas que nos cercam. Mas vá lá. Ufa! Pois é... Ainda bem que é só ficção, ainda bem! Tudo, enfim, não passa de mera semelhança...
Roberto Axe
10 de março de 2015.
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