quinta-feira, 26 de março de 2015

O MOSCA - Prefácio


O que pode incomodar mais do que uma mosca? Ninguém sabe de onde vieram e nem para onde vão as moscas, só sabemos que defendemos, feito soldados, a superfície de seja lá o que for para que o nojento inseto nunca pouse em cima. Matar moscas é a coisa mais comum do mundo, todos matam moscas, todos odeiam moscas, no entanto esses bichinhos estão vivos e têm todo o direito à existência, por que não? Então de onde vem tanto ódio? Bem, eu suspeito que o asco que sentimos não é pela mosca em si, mas por não sabermos onde o ‘vil’ inseto colocou suas patas antes de vir pousar em nossa comida. A mosca é uma espécie de emissário do desconhecido, um pequeno diabo, isso nos assusta. Mesmo doenças mais graves podem ter na mosca seu sinistro agente, e isso é intolerável e assustador. No entanto, se criássemos uma mosca de forma segura, sabedores de que nunca pousou em lugares infectos, possivelmente não ligaríamos a mínima se ela passeasse tranquila sobre nosso pão. Pois bem. Em uma Sociedade em que se queira uniformizar a mentalidade das pessoas isso não seria diferente, me parece. Neste livro vamos acompanhar uma mosca, ou melhor, um homem que bem poderia ser uma. A estória que agora começa é sobre um sujeito que acorda de um rápido cochilo no metrô sem lembrar-se de quem é nem de onde e como vive. Seu nome é Leonardo Daemon. Leonardo, ou simplesmente Léo, quando percebe que está com amnésia, resolve não contar a ninguém e decide transformar seu infortúnio em uma grande aventura. Porém, vai percebendo que nem tudo foram flores em sua vida pregressa e enquanto vai desvendando sua antiga identidade, vai dando-se conta de que é apenas isso: uma identidade, ou se preferir, um número, uma estatística. Não bastassem as surpresas que vai encontrando em sua vida particular, aos poucos vai percebendo que vive em um mundo idealizado para que as pessoas apenas circulem créditos e mantenham suas mentes nos entretenimentos. A Arte foi banida e a subjetividade é crime.  No entanto constata que as pessoas são totalmente indiferentes a uma condição que parece mesmo ter lhes roubado as próprias vidas. Livre para pensar, pois ninguém sabe de sua amnésia, Léo vai descobrindo tudo que o cerca e passa a desvendar o admirável truque que os comandantes do espetáculo impetraram como Sociedade perfeita. O problema é que todos esperam a volta do “Inimigo”, que ninguém sabe quem é, mas que poderá botar a perder aquele mundo asséptico, porque trará de volta a terrível, suja e banida subjetividade. Mesmo nos guetos, onde vivem os que ficaram de fora, tudo segue pacífico graças ao profeta oficial do esquema, que promete que os bem comportados irão, depois da morte, para um paraíso em que, finalmente, poderão consumir de tudo à vontade. Tudo perfeito para todos, menos para Leonardo, que começa a abrir os olhos e ver em tudo isso uma grande armadilha. Seria Leonardo Daemon o inimigo?
Longe de querer criar um romance distópico, eu quis apenas contar uma história de revolta. O Humano tendo de abandonar suas mais altas aspirações para caber nos interesses de terceiros que o pesam e o calculam por sua utilidade. O corpo congelado e plastificado nos modismos, os instintos arrefecidos, a mente distraída, o pensamento como algo perigoso. Bonecos frios inoculados nas mentes menos criativas para que não pulem os muros que fazem divisa com o Infinito. O prazer das descobertas nos mergulhos mais assustadores, tidos pelos arautos do medo como coisas demoníacas. Tudo bobagem. Somos o que pensamos e pensamos porque somos. Sem ‘filosofismos’.  Aquilo que é usado para assustar as mentalidades simples cheira a uma grande picaretagem, são fantasmas assalariados manobrados por títeres inescrupulosos. Qualquer um que descubra que é livre para pensar o que quiser o faz sempre demolindo mundos, pois são os cacos desses mundos que são catados pelo chão por figuras fantasmagóricas enquanto xingam a impertinência do pensador. A cada mundo que se espatifa morre um milhão de fantasmas. Porém, sempre haverá os monstrengos que, feitos lixeiros metafísicos, juntam o que sobrou para montar totens monstruosos visando afastar incautos de caminhos que julgam proibidos. Enganam-se redondamente, pois o criador, por sua óbvia condição, cria também os caminhos, portanto nunca passa por ali. Só os que não têm condições de voar arrastam seus pés – ou joelhos - por esses tenebrosos lugares. Pois que nunca cheguemos à condição humana miserável que a história contada neste livro nos remete. Seria então a morte predominando sobre a vida, uma morte enfeitada, perfumada, colorida, ufanista; tão bem engendrada que ninguém se daria conta do ardil. Só os mais atentos perceberiam estar a serviço da própria escravidão, os demais seguiriam felizes e bem entretidos. Voltando à mosca, quem sabe só ela, vinda de sinistros e sombrios lugares possa trazer em suas patas sujas o desassossego, o questionamento... a liberdade! Sim, a despeito do horror que causaria aos acomodados, o ‘demoníaco’ emissário poderia trazer a salvação no exemplo de seu voo, no destemor de seus pousos. A superfície branca e lisa pela qual ela anda não pode nada, e julga ter a força justamente em sua imensidão e brancura, se me permitem o pequeno delírio. Caramba! Essas coisas parecem tão longe de nós que até nos causam certo conforto.  Ainda bem que a aventura que está prestes a se descortinar aos olhos do caro leitor[a] nunca aconteceu, então, por enquanto podemos comemorar: enfim é só uma história, não é mesmo? Que bom. Mesmo que de vez em quando algum roçar de desespero nos acometa e sintamos uma espécie de agonia pela insuficiência das coisas que nos cercam. Mas vá lá. Ufa! Pois é...  Ainda bem que é só ficção, ainda bem!  Tudo, enfim, não passa de mera semelhança...     



                                                                                     Roberto Axe
                                                                              10 de março de 2015.








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