quarta-feira, 14 de abril de 2010

A FILOSOFIA DO DIABO


PREFÁCIO



Napoleão dizia: raspe um russo e por baixo aparecerá o cossaco! Esta frase sempre me inspirou alguns pensamentos. Qual o sujeito que apareceria se raspássemos um civilizado? Acho que quem mais aproximou o rosto deste quadro foi Freud. Fica difícil, ao analisarmos nosso dia a dia, não entregar o cetro ao pai da psicanálise. Mas então somos obrigados a admitir que subjaz abaixo dessa tenra roupagem, uma força invisível, para a qual se fazem necessárias todas as formas de jogos e interpretações com o fito de decifra-la e distraí-la. Por que? É tão forte assim? É tão terrível assim? Então por que não incorporamos esta força definitivamente como nossa? Como um poder atávico do animal que levamos conosco por onde quer que andemos, embora ferido por lanças invisíveis, mas poderosas. Se olharmos mais atentamente para as mãos dos portadores destas lanças, veremos que elas estão vazias, as lanças não existem, apenas nos fizeram crer em suas pontas envenenadas. Por que tanto medo do animal? Por que anatematiza-lo? Por que ser ele a fonte de todo o ‘Mal’? Não é preciso ir longe para encontrarmos a resposta, é simples: os instintos são o inimigo mortal desta grande acomodação organizacional chamada sociedade. E não são poucas as distrações e arranjos que os instintos mais poderosos observam com seus olhos extáticos e atentos, como os de uma serpente. Quem não é do ‘ramo’ fica entre o espanto e o riso ante a pantomima sem a qual esse grande negócio não iria para frente, esse grande negócio que tem por essência a manutenção do ‘ser humano’ fora do ‘ser’. Afinal o que é ‘ser’? Ora, uma discussão ontológica reservada aos filósofos da teoria! Tudo muito bonito, muito erudito! Mas, enquanto isso a serpente de olhos extáticos e atentos continua lá... alheia, perigosa, segregada, observadora silenciosa... sempre varrida para baixo do imenso tapete platônico/teológico. Que este extenso e invisível tapete abrigue os que se subtraem ao seu ‘inodoro’ calor, vá lá, é a grande multidão dos friorentos! Porém, existem os animais selvagens que amam a neve! Eles se desvelam e saem lentamente debaixo deste abrigo aconchegante e vão à caça, animais de rapina que são... animais curiosos, animais de andar lento e olhos de fogo! Ferinos de calmos e belos gestos. É preciso então que não saiam! É preciso encontrar sempre uma ameaça, sim, mais uma ameaça... Pois quem não tem medo do frio é porque é feito de fogo! Então se cria o inferno, lugar de fogo é no inferno! Mas é cada vez mais difícil dormir embaixo do imenso e tépido tapete, pois à noite os risos demoníacos lá de fora anunciam uma alegria que não é tolerada, não pode ser tolerada, este riso desafiador dos ferinos de fogo... e seus insuportáveis hálitos de liberdade! Este livro é dedicado a todos aqueles que andam na neve, quem sabe até derretendo-a com seus passos incandescentes e descobrindo a relva mansa que subjaz tranqüila sob seus pés descalços. Daí então possivelmente estes correrão, saltarão, darão cambotas, pularão, dançarão, darão muitas risadas e quando finalmente estiverem vencidos pelo cansaço de tanta alegria, abrirão suas imensas asas e voarão para onde o infinito melhor lhes aprouver. Enquanto isso, muitas doutrinas serão ‘ensinadas’ lá embaixo do Grande Tapete; agora não só o fogo deverá ser evitado como pestilência, agora, também deverão ser evitadas... as asas. Talvez então o coro exclame em uma só voz: ‘Maldito seja, todo aquele que é feito de fogo! Maldito seja, todo aquele que voa!’, mas todos nós já estaremos longe demais para escutarmos as vozes uníssonas desse patético coro, nada do que nos pertence e nos faz mais fortes pode ser varrido para baixo desse tapete incolor e mortiço, até porque, teríamos então que quebrar nossas imensas asas de morcego para caber embaixo de qualquer coisa.

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terça-feira, 13 de abril de 2010

O QUADRO

A velha tinha saudade de quando era velha... agora julgava-se 'muito velha'. Passava os dias ali, sentada na cadeira junto à janela de sua pequena casa. Era uma observadora silenciosa da vida que brotava, incessante e indomável, através dos ruidosos risos das crianças que brincavam alheias pela rua. Ela ali, sentada, só olhava para fora... a seu lado o baú imaginário em que guardara suas infinitas lembranças, e que agora acomodava, zelosa, os instantes estéreis e sem cor de seu dia a dia. Acondicionava os segundos com carinho neste baú invisível e inseparável, pois haveria de ser ele o companheiro em sua última e definitiva viagem. Ou não. Ficara íntima da morte, até conversava com ela; certa vez se flagrou servindo chá para dois, quando se deu conta, riu. Foi a última vez que riu. Não encontrava mais motivo para risos, já não conversava com ninguém, dizer o que? Apenas olhava pela janela. As pessoas passavam indiferentes pela rua, nem notavam seu semblante cansado, seu olhar perdido nas banalidades lá de fora. Era só um rosto velho na velha janela da velha casinha, nada mais. Um belo dia, foi comprar frutas em uma feira ali perto, não muitas, pois não podia carregar peso. Quando voltou para casa, parou seus passos arrastados bem em frente à sua moradia. Olhou para a janela vazia, aberta, e imaginou-se ali, sentada. Visualizou seu rosto triste naquela janela e concluiu que aquilo mais parecia um quadro, sim, um quadro melancólico que tinha como adequada moldura o velho marco e a descascada guarnição da janela; a escuridão dentro da casa - quase não acendia as luzes, pois recolhia-se cedo - emprestava as tintas lúgubres com que era pintado o fundo daquela tela na parede caiada. Sorriu. Entrou, humilde, em sua residência, largou as frutas na cozinha e foi ao quarto. Revirou em uma gaveta até achar um velho batom, em seguida postou-se em frente ao espelho e com sua mão trêmula, pintou, ou melhor, borrou os lábios de vermelho. Retirou os grampos e penteou os cabelos brancos e finos. Terminada a tarefa, dirigiu-se à sua cadeira na janela, sentou-se e abriu um imenso sorriso de acrílico. Agora, a velha inclinava a cabeça numa reverência respeitosa aos transeuntes da rua e presenteava-os com seu melhor sorriso. Era correspondida. Ficou feliz... se era para protagonizar uma obra de arte, mesmo que num quadro que tenha como moldura o marco e a acabada guarnição de sua janela, que estivesse alegre. Quem sabe assim contrariasse, zombeteira, o artista... este artista que com a destreza dos mestres, tão bem soube usar o martelo e o cinzel para esculpir-lhes os sulcos no rosto; este artista que tão bem soube misturar tintas até encontrar o tom de cinza com que lhe pintou o olhar e a alma. Quem sabe seu sorriso representasse um pequeno deboche, uma pilhéria, uma provocação, qualquer coisa... a este impertinente, hábil e irreversível artista chamado Tempo...