quarta-feira, 27 de abril de 2011

OS OLHOS DA SOMBRA

Lembro bem da primeira vez que o vi. Eu tinha chegado em casa cansado, os ossos doíam, havia sido um dia duro de trabalho. Tomei banho, desci para o patamar inferior, - minha casa tem dois pisos - comi alguma coisa e fui ler algo, não lembro o quê, acho mesmo que era alguma coisa de Poe... Bem, sabia que o sono logo viria, estava morto. Recostei-me em minha cadeira de leitura, pus meus óculos e deslizei prazerosamente para as letras. Pronto. Casa escura, só a luz para a leitura jorrando amarelada em meu livro. Clima. Agora nada poderia me deter...Nada? Que nada! Um barulho estranho veio do outro cômodo, parecia um ronco ou algo parecido. Num primeiro momento, mesmo um pouco apreensivo, não dei bola, afinal, são muitos os barulhos contidos em uma casa escura; parece mesmo, que quando apagamos as luzes, seres de outros mundos vêm nos pregar peças, caçoar de nossos medos. Continuei lendo. O ronco repetiu-se, agora não havia dúvidas, tinha algo ameaçador no outro cômodo. Quando pensei nisso já era tarde demais... senti a presença ameaçadora em minhas costas... Num primeiro momento fiquei paralisado, a cabeça vazia, a mão fria do pavor tocou minha espinha e senti o sangue gelar. Não havia sombra de dúvidas, aliás, se havia alguma sombra, esta continha algo sinistro em seu ventre e que respirava; sim, respirava... senti o bafo quente que vinha por trás da cadeira. Lembro-me bem de que precisei de algum tempo para ajuntar algumas migalhas de coragem. Mesmo para fechar calmamente o livro foi preciso muita força, que eu buscava não sei de onde. Era um hálito enjoativo aquele, comecei a ficar nauseado. Reuni então o que podia para reforçar meus nervos e comecei a me levantar lentamente, obviamente, sem cometer a audácia de olhar para trás. Recordo que tive a impressão de ter demorado umas duas horas – incrível como perdemos a noção de tempo em momentos de pânico – até ficar totalmente em pé, ereto. Pronto, eu agora era um poste plantado em minha própria sala e o observador sombrio continuava lá, a respiração lenta e forte. O que faria agora? Atacaria-me pelas costas? Mas não. Nada aconteceu e iniciei então a operação mais difícil e apavorante da minha vida; iria virar-me com cuidado, e finalmente encarar o invasor. É verdade que pensei em correr em direção à porta, mas temi ser alcançado com facilidade pela aterrorizante iminência parda. Voltei-me lentamente e aos poucos os pelos do meu corpo começaram a eriçar, meus olhos vítreos começaram a divisar algo negro, baixo, disforme e logo estacaram em outros olhos... nunca esquecerei aqueles olhos... eram imensos, vermelhos, e a agudeza das pupilas enormes me trespassaram feito uma faca! Não sabia o que era aquilo e senti que minha mente perdera a condição de avaliar, pois era refém do pavor. O monstro moveu-se lentamente e num sorriso ameaçador deixou à mostra suas presas afiadas, como a me dizer que as possuía e não teria a menor cerimônia em usá-las. Era algo monstruoso que se movia nas sombras, lenta e pesadamente; seus olhos sinistros não desgrudavam da frieza cadavérica dos meus. Chegou mais perto então, como que a me farejar. Hoje não tenho vergonha de dizer que urinei nas calças e se aquele bicho tivesse algum senso de humor, teria dado gargalhadas regozijando-se pela sua vitória. Depois de me rodear com suas quatro patas com garras imensas, voltou para as sombras desaparecendo lentamente na escuridão. Eu ainda fiquei por muito tempo parado, extático, frio. Incrível, mas foi só quando amanheceu que consegui mover-me. O Sol agora iluminava a casa e então, movido pela segurança da claridade e uma espécie de ódio – ou sei lá o quê - pela criatura noturna, corri ao meu quarto, peguei meu revólver e vasculhei a casa. Mas era tudo bobagem, aquela era uma criatura das sombras, era impossível encontrá-la de dia, sob o abraço quente e protetor do Sol. Fui trabalhar, teria de pegá-lo à noite quando surgisse da infinita escuridão, seu lar, sem dúvida. Mas... bem, para resumir a história... foi tudo em vão, pois quando o monstro aparecia eu não conseguia pegar a arma, mesmo ao meu lado, petrificado que ficava com a sua presença. Mas o mais estranho em tudo isso é que fui me acostumando com a aparição do bicho, passei até a observá-lo; ele sempre lento, ameaçador, inoportuno, e quase, diria, íntimo. Algum tempo se passou e resolvi botar um ponto final naquilo, afinal, a casa é minha! Ora, se não mandar em minha casa, o que me sobra? E tem mais! Se a casa é minha, as sombras da casa também são só minhas! Resolvi que se ele era o rei das sombras, então eu deveria ser mais que isso... deveria mostrar ao monstro que aquela escuridão tinha dono, e este não era ele! Foi então que decidi, antes da noite esticar seu véu preto e misterioso, que deveria alojar-me naquele cômodo, que é o mais escuro da casa, e ali aguardar que tudo ficasse em sombras. Ele então surgiria, mas desta vez os papéis se inverteriam e o intruso saberia, finalmente, quem mandava. E assim foi. Deixei acesa a luz do abajur de leitura para atraí-lo e fiquei em meu canto no escuro. Quando a noite já ia alta ele surgiu, sempre calmo, seguro, arrogante. Ao não me ver na cadeira voltou-se de supetão, mas seu olhar, sempre tão amedrontador, deu com o meu. Meus olhos eram sanguíneos, bem abertos, donos de si... Desarmado pela surpresa, o monstrengo deu sinais de medo, isso mesmo, medo. Movi-me lentamente em sua direção, tinha em meus olhos o brilho sinistro do assassino, do matador... um grande e assustador exterminador vindo das sombras, das suas sombras, só suas, de mais ninguém! O intrujão, então, amedrontado pela presença inusitada, procurou abrigo junto à tímida luz do abajur, em seguida deitando-se no chão e ficando de barriga para cima. Agora se refestelava e grunhia feito um pequeno bichano a pedir carinho. Senti pena. Acabei desarmado em meus instintos e quando dei por mim coçava-lhe a barriga, sorrindo. Mais adiante me surpreendi jogando, amiúde, uma pequena bola amarela para o escuro e o bicho a correr para a escuridão e voltar com ela entre os dentes. Acariciava-lhe a cabeça e o dócil animalzinho deixava a bola cair livre pelo chão, solta de suas presas afiadas. É incrível como um bichinho desses pode nos fazer felizes! Hoje em dia continuo com minha rotina, casa/trabalho-trabalho/casa, porém, devo reconhecer que é uma delícia chegar ao conforto do lar, tomar um banho, descer para o andar no solo e ler um bom livro só com a velha e boa luz do abajur acesa. Ao redor, a silenciosa e mansa escuridão da casa sempre embala meu sossego, e aos meus pés meu animalzinho dorme enroscado e satisfeito. De tanto em tanto nos olhamos, pois temos uma cumplicidade muito íntima, e sorrimos. Sabemos que só assim, livre do medo, a casa segue tranqüila...