domingo, 5 de junho de 2011

A RAINHA DA RUA!

Cinderela, Cinderela, rainha da rua! Rainha Cadela!

Pobre puta Cinderela. Condenada a vagar pelo vilarejo, agora velha e enrugada vestida apenas por andrajos sujos, e mal-tratada. Louca, não ligava à mínima para isso. O que irritava Cinderela era aqueles meninos na sua cola! Eram muitos garotos a lhe seguir pelas ruelas, a não lhe deixar em paz. Sempre zombavam, cuspiam, jogavam alguma coisa... era humilhante para a puta velha este tratamento que julgava não merecer. Agora era ‘a louca’ – Pois sim, louca, então, - pensava ela – louca é? Mas quando jovem me achavam ‘bem normal’, aliás, mais normal que as ‘mulheres certinhas’, quando vinham comprar meus favores e realizar fantasias que só julgam possível com putas. Aí eu prestava!

Pobre Cinderela.

O apelido ‘Cinderela’ era justamente oriundo da formosura da prostituta, em seus anos vicejantes. Que ironia! Agora era só uma velha louca esquecida por tudo e por todos, menos pelo Tempo, este carrasco inexorável, e pelos garotos maldosos, claro. Nos seus tempos, tinha cabelos louros e finos que esvoaçavam feito trigo no campo, e suas formas generosas atraiam a simpatia e prontidão de todos, desde o figurão até o pobretão, que muitas vezes ela atendia por pura compaixão. Gente que chegava ao cabaré se esgueirando pelas ruas, afinal, tinham reputações a zelar. Eram ‘homens de bem’. Tudo isso ela compreendia. Facilitava as coisas, ajudava, e até oferecia o ombro para que marmanjos desmamados chorassem suas desventuras burguesas e desinteressantes. Tinha uma santa paciência, a puta Cinderela.

Cinderela, Cinderela, rainha da rua! Rainha cadela!

Agora isso... recebia como prêmio, como uma espécie de aposentadoria desabonadora, aquele coro em seus ouvidos. Condenada a vagar pelas ruazinhas de pedra com aqueles garotos horríveis às suas costas feito o rabo de um crocodilo. Como se já não bastasse ter de viver com ajutórios e esmolas. Revirava lixo atrás de restos de comida e às vezes parava e pensava que já fora linda, desejada, e então aquecia um pouco seu coração ferido com essas migalhas de lembranças... seus pensamentos sempre embalados pelo fundo musical do deboche...

Cinderela, Cinderela, rainha da rua! Rainha cadela!

Seus cabelos brancos, agora grudentos. Seus restos de dentes podres. Suas roupas rasgadas. Seu futuro... que agora tinha o nome de Morte. Seu corpo agora cansado e velho, que proporcionou, há muito, muito tempo, as delícias lascivas daqueles homens tão respeitados. Pois, agora todos lhes viraram as costas. Quem sabe não seria ela um cisco no olho do respeitado vilarejo... um cisco a ser varrido permanentemente pra lá e pra cá, até chagar o dia fatal em que seu corpo – há muito imprestável -fosse encontrado entre algumas latas de lixo - Ufa! – todos respirariam aliviados – Já foi tarde a puta louca! Puta Cinderela! – Mas o problema maior para a velha era realmente aqueles garotos e aquela estrofe repetida e repetida infinitamente. Era muita maldade com a louca! Louca, louca! Ma aí a velha teve um estalo! - Louca! Louca! Este é o problema! E se eu ficar ‘normal’ como eles! E se eu agir, como os normais, só uma vez? E se eu agir como os respeitáveis, só uma vez? Não falaria, finalmente, a sua linguagem? Não me faria entender? Sim, porque não? Se eles são normais só entenderão se eu falar como eles... acho que poderei livrar-me desses garotos!

Cinderela, Cinderela, rainha da rua! Rainha cadela!

A puta velha então parou e ficou em silêncio. Os garotos pararam também, um pegou uma pedra. A mulher sorriu com seus cacos de dentes e perguntou a um deles se era neto do doutor Angenor. – Sim – respondeu o menino surpreso. – Pois então pergunte à sua avó se ele ainda tem aquele cancro horrível no saco! – em seguida a mulher virou-se para outro – E você, menino. Não é neto do ex-delegado Valdir? – o garoto assentiu com a cabeça, meio sem jeito – Então pergunte para sua avó se ele continua gostando do ‘dedinho’ – e assim foi... com um por um. Até todos saírem, intrigados, a procurarem suas avós. A partir daquele dia, Cinderela pode ser louca à vontade, sem o coro desabonador atrás de si. Deixaram-na definitivamente em paz. Revirando lixo. Louca! Louca! Cinderela... a Rainha Cadela...

sábado, 4 de junho de 2011

O PORTADOR

E olhe que escolhi esta cabana por ficar bem longe!
De madeira crua, rústica, acanhada... só uma porta... e a solidão da montanha...
Foi assim que eu quis. Ficar longe de tudo, de todos, só mesmo a imensa floresta à minha volta. Faço passeios pela mata à hora que me dá na telha, aliás, faço tudo que me der na telha, aqui, isolado em minha solidão. Na cabana não há luz artificial... não, não, luz aqui só a do fogo de minha pequena lareira. Fogo que faz dançar imagens negras e estranhas nas paredes de pau. Quando noite, lá fora a escuridão é total e os ruídos são muitos, oriundos de meus amigos animais silvestres, que livres, fazem a algazarra de sempre para saudar o manto negro e misterioso que se estende, calmo, fazendo brotar estrelas no céu.

Não existe acesso à minha casa, não quis nenhuma picada, estrada, nada. Só o mato virgem em volta, nada mais. Quando preciso comprar minhas coisas, saio por entre as árvores e desço a montanha até o vilarejo. Quando volto, certifico-me de que não estou sendo seguido, pois não quero intrusos em meu pequeno mundo. Pois é... Eu voltava de uma dessas incursões ao pé do morro quando, surpreso, vi que a porta do barraco estava aberta. Já era noite e as estrelas no céu claro sorriam suas luzes em direção à minha casa. Sim, dava para ver bem, a porta estava aberta! Dentro, escuridão total. De minha parte nunca precisei de lanterna ou algo parecido, pois conheço a anatomia de meu chão como conheço a palma de minha mão.

Entrei.

Livrei-me das compras colocando-as em umas prateleiras em um canto e nessa pantomima no escuro, já aproveitei e peguei minha afiada adaga. Aos poucos comecei a escutar uma respiração pesada e descompassada. Sem dúvidas o invasor estava na casa, e mais, conseguia percebê-lo sentado em minha poltrona – que impertinência! – agora eu estava com raiva, uma raiva mortal, dessas que acomete a gente quando somos invadidos por imbecis em nossa privacidade. A cara de pau do intruso fez borbulhar meu sangue, normalmente tão calmo. Resolvi então que se ele era calmo e frio, eu deveria lhe dar o troco. Comecei a acender a lareira como se não o tivesse percebido, embora lhe desse às costas, temerariamente. Quando o fogo estabilizou voltei-me calmamente para encará-lo. Mirabolava coisas em minha cabeça, truques e mais truques, para não ficar, definitivamente, refém do medo, pois isto estragaria tudo.

Encarei o Homem.

Era algo grotesco. Vestia andrajos negros e escondia suas feições sob um imenso capuz, com exceção – uma exceção sinistra – de um olho... um olho... um olho vermelho e arregalado, que conseguiu gelar meus nervos de imediato. Nunca mais esqueci aquele olho. O sujeito então levantou calmamente uma de suas mãos e me apontou o dedo para em seguida pronunciar o meu nome. Era uma voz terrosa que saía daquele capuz.
- Sim sou eu – respondi com uma voz meio sumida, e emendei em seguida – E você, afinal, quem é?
- Meu nome é Portador... meu nome completo é Portador de Teus Medos. Demorei a encontrá-lo, mas finalmente estou aqui.
- Mas não por muito tempo. Gostaria que se fosse! Agora! – esbravejei.
O homem levantou-se calmamente e partiu silencioso. Tranquei a porta. Mas aquele olho vermelho ficou encravado em minha mente.

Algum tempo se passou e uma noite ao retornar à casa depois de um passeio pelo mato, vi a porta aberta e a lareira acesa. Quando entrei ele estava lá, o desgraçado do Portador! O filho da puta aquecia-se junto ao fogo. Quando recebi o olhar injetado daquele olho horrendo, tremi. Mas agora já era abuso, como assim? Aquecendo-se junto à minha lareira? O monstrengo impertinente julgava mesmo que poderia vir à qualquer hora e instalar-se tranqüilamente nas minhas coisas! Era só o que faltava!
- Vá embora agora! - ordenei com raiva – e lhe garanto, se voltar vai se dar mal! Minha paciência acabou!
O Portador, resignado, retirou-se. Tinha o andar lento e andava encurvado, além de não cheirar bem. Era uma figura nojenta e assustadora.

Depois da última visita, funesta, do Portador, cheguei a pensar em cercar a casa, mas justamente havia escolhido aquele local para me livrar das cercas! Não, não... haveria de encontrar outra solução, pois uma coisa era certa, o desgraçado sabia o caminho para minha cabana. Eu tentava também não ficar com a imagem daquele olho em minha lembrança, aquele olho arrepiante e escroto! Se cercasse a casa ou ficasse com a imagem daquele olho perturbando minha mente, saberia que o asqueroso teria vencido. Bem, se não voltasse já seria uma grande coisa, mas tinha o forte pressentimento de que voltaria... e voltou!

A porta aberta, a lareira acesa e... o nojento dormindo em minha cama! Dessa vez não agüentei! Acometido por uma raiva visceral, peguei minha adaga e me acheguei a ele.
- Hei, acorde!
O imenso olho então brotou da escuridão do capuz, sonolento e vermelho. Saltei sobre o invasor com minha faca e a enfiei com ódio naquele olho! Diversas vezes! O monstro gritava, esperneava, mas em vão. Só parei quando me certifiquei de que estava cego! Depois disso peguei aquela praga pelo braço e desci a montanha, pouco me lixando para suas gritarias e faniquitos. Deixei o Portador, que agora era portador de uma séria deficiência física, bem longe de minha montanha. Que vagasse a esmo e me esquecesse!

Finalmente à paz voltou ao meu pequeno reino. O único inconveniente é aquela mancha de sangue do lado de minha cama. Não houve jeito de removê-la... tentei de tudo, mas não deu. Logo ao lado da cama, palco do crime, como a me lembrar que aquele homem, mesmo sem o terrível olho, ainda existe e me procura. Nesses momentos olho para minha adaga, esta sim, de lâmina brilhante e limpa, e fico tranqüilo. Não me arrependo de nada. Faria de novo e de novo, faço qualquer coisa para a casa continuar assim, sem cerca em volta e freqüentada, à noite, apenas pelos sorrisos das estrelas...