Dr. Gouveia fez merda.
E agora?
E agora Dr.Gouveia, que é muito importante, precisa limpar o
que fez.
Como?
Ora, Dr, Gouveia é esperto, há de arrumar um bode
expiatório, alguém com costas sujas nas quais mais merda ou menos merda dê na
mesma merda...
Os funcionários de confiança do Dr. Gouveia já sabiam em
quem botar a culpa. Ah, os funcionários de confiança do Dr. Gouveia,
respeitável Dr. Gouveia... Ele tinha muitos amigos, mas poucos de confiança,
daqueles que varrem para debaixo do tapete as merdas do Dr. Gouveia.
Esses amigos tiveram uma idéia. Conheciam um vagabundo,
drogado, bêbado, desqualificado, imoral [Dr. Gouveia amava esta palavra:
Moral], pária, porco... enfim, alguém cujas costas cabiam todos os piores
adjetivos que se pudesse imaginar [embora Dr. Gouveia não fosse muito
imaginativo] .
Era um tal de Zé da Cola. Cara criado em beco; fumador,
bebedor, cheirador, ladrão, maconheiro sem-vergonha. Era só oferecer uma
graninha e o Zé toparia abraçar a culpa pelo crime cometido pelo impoluto Dr.
Gouveia. Não tinha erro.
E então Zé? Topa ou não topa?
Topo não senhor. Isso aí dá cana grossa... eu, bem, eu rolo
por aí... fumo, bebo, cheiro, às vezes bato em alguma puta, já bati carteira,
rolei em beco, fui preso por vadiagem, sou escória, sacou. Sou casca grossa,
mas isso aí eu topo não, isso é coisa grande... é muita cadeia, é cadeia demais
da conta.
Ora, Zé, você é um merda mesmo, o que tem a perder?
Tenho a perder minha fumada, minha cheirada, minhas putas,
meus becos, minhas bebedeiras, minha vadiagem.
Então você não perde nada.
Perco tudo.
Mas Zé, perder é da vida... você, mais que ninguém, já devia
saber disso.
Caramba, e como sei! Mas, e o tal doutor esse, você já disse
pra ele que perder é da vida?
O doutor é um homem sério, não sabe perder. Não gosta de
perder... mas você Zé, é um fodido! Pegue essa grana e assuma o crime!
Assumo não. Esta vida errada é tudo que eu tenho. Cacete! É
muita maconha, crack, cocaína, cachaça, cola, puta... é muita coisa preu
largar...
Você não vale nada mesmo!
Vai lá gente fina, diz pro tal doutor que seja homem uma vez
na vida!
E o respeito rapaz! Você sabe de quem está falando? É o
Doutor Gouveia!
Esse mesmo, diz pra ele que eu tenho tudo a perder, pois
quem me vê já sabe quem sou, o que sou, seja lá que porcaria for... minha identidade: um desqualificado! Que
seja... já o tal doutor quem vê não enxerga o assassino, só enxerga o homem
importante, é bom assim né?
Seu insolente! Não custa nada! O corpo... o corpo está aqui
no porta-malas e...
Olha meu, diga o que quiser, mas agora vou enrolar unzinho,
dar um, dois, e sair pra vida, é isso
irmão...
O doutor vai ficar furioso!
Não é problema meu, certo?
Dias depois, Dr. Gouveia, que também era político, fez
passar uma lei para limpar os becos imundos da cidade. Perseguiu, prendeu,
bateu, deu sumisso em todos os vagabundos da área. Foi saudado pela população
como o salvador da pátria. Dr. Gouveia aproveitou a boa maré e se candidatou a
prefeito. Aos funcionários de confiança, confidenciou que de um limão fez uma
limonada e que não era à toa que seu apelido agora era ‘paladino da lei’.
Quanto ao defunto, dera outro encaminhamento, ninguém nunca soube de nada. Mas
dizem – os funcionários de confiança - que a frustração do Dr. Gouveia pelo vagabundo
desqualificado não ceder aos seus dinheiros o incomodou por muito tempo “era só
o que faltava” confidenciava o doutor “era só o que faltava... não encontrar
ninguém para levar a culpa, é o fim do mundo... definitivamente não dá para
confiar nessa gentalha!” esbravejava com grandiloqüência, já treinando seu
discurso para prefeito.