terça-feira, 30 de outubro de 2012

Dr. Gouveia Fez Merda...


Dr. Gouveia fez merda.

E agora?

E agora Dr.Gouveia, que é muito importante, precisa limpar o que fez.

Como?

Ora, Dr, Gouveia é esperto, há de arrumar um bode expiatório, alguém com costas sujas nas quais mais merda ou menos merda dê na mesma merda...

Os funcionários de confiança do Dr. Gouveia já sabiam em quem botar a culpa. Ah, os funcionários de confiança do Dr. Gouveia, respeitável Dr. Gouveia... Ele tinha muitos amigos, mas poucos de confiança, daqueles que varrem para debaixo do tapete as merdas do Dr. Gouveia.

Esses amigos tiveram uma idéia. Conheciam um vagabundo, drogado, bêbado, desqualificado, imoral [Dr. Gouveia amava esta palavra: Moral], pária, porco... enfim, alguém cujas costas cabiam todos os piores adjetivos que se pudesse imaginar [embora Dr. Gouveia não fosse muito imaginativo] .

Era um tal de Zé da Cola. Cara criado em beco; fumador, bebedor, cheirador, ladrão, maconheiro sem-vergonha. Era só oferecer uma graninha e o Zé toparia abraçar a culpa pelo crime cometido pelo impoluto Dr. Gouveia. Não tinha erro.

E então Zé? Topa ou não topa?

Topo não senhor. Isso aí dá cana grossa... eu, bem, eu rolo por aí... fumo, bebo, cheiro, às vezes bato em alguma puta, já bati carteira, rolei em beco, fui preso por vadiagem, sou escória, sacou. Sou casca grossa, mas isso aí eu topo não, isso é coisa grande... é muita cadeia, é cadeia demais da conta.

Ora, Zé, você é um merda mesmo, o que tem a perder?

Tenho a perder minha fumada, minha cheirada, minhas putas, meus becos, minhas bebedeiras, minha vadiagem.

Então você não perde nada.

Perco tudo.

Mas Zé, perder é da vida... você, mais que ninguém, já devia saber disso.

Caramba, e como sei! Mas, e o tal doutor esse, você já disse pra ele que perder é da vida?

O doutor é um homem sério, não sabe perder. Não gosta de perder... mas você Zé, é um fodido! Pegue essa grana e assuma o crime!

Assumo não. Esta vida errada é tudo que eu tenho. Cacete! É muita maconha, crack, cocaína, cachaça, cola, puta... é muita coisa preu largar...

Você não vale nada mesmo!

Vai lá gente fina, diz pro tal doutor que seja homem uma vez na vida!

E o respeito rapaz! Você sabe de quem está falando? É o Doutor Gouveia!

Esse mesmo, diz pra ele que eu tenho tudo a perder, pois quem me vê já sabe quem sou, o que sou, seja lá que porcaria for...  minha identidade: um desqualificado! Que seja... já o tal doutor quem vê não enxerga o assassino, só enxerga o homem importante, é bom assim né?

Seu insolente! Não custa nada! O corpo... o corpo está aqui no porta-malas e...

Olha meu, diga o que quiser, mas agora vou enrolar unzinho, dar um, dois, e sair pra vida, é isso  irmão...

O doutor vai ficar furioso! 

Não é problema meu, certo?

Dias depois, Dr. Gouveia, que também era político, fez passar uma lei para limpar os becos imundos da cidade. Perseguiu, prendeu, bateu, deu sumisso em todos os vagabundos da área. Foi saudado pela população como o salvador da pátria. Dr. Gouveia aproveitou a boa maré e se candidatou a prefeito. Aos funcionários de confiança, confidenciou que de um limão fez uma limonada e que não era à toa que seu apelido agora era ‘paladino da lei’. Quanto ao defunto, dera outro encaminhamento, ninguém nunca soube de nada. Mas dizem – os funcionários de confiança - que a frustração do Dr. Gouveia pelo vagabundo desqualificado não ceder aos seus dinheiros o incomodou por muito tempo “era só o que faltava” confidenciava o doutor “era só o que faltava... não encontrar ninguém para levar a culpa, é o fim do mundo... definitivamente não dá para confiar nessa gentalha!” esbravejava com grandiloqüência, já treinando seu discurso para prefeito.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

A TRILOGIA - Prefácio


Este é um livro irreverente, haverá quem diga: ‘satânico’. Fala de individualidade e autodescoberta, mesmo que estas importem em afastar-se dos demais, esmiuçar a vida por conta própria e cometer crimes. O protagonista Renato Daemon é um escritor que resolve morar nele mesmo, e não o faz sem passar por descobertas assustadoras e mesmo avassaladoras, no intuito de incorporar sua sombra como fonte de poder. Fazer isto não é para qualquer um, requer uma atitude destemida que obviamente desagrada aqueles que têm uma leitura de mundo bastante simples, os comuns. Ele seguirá em frente, fazendo desta descoberta sua arte e confrontando este novo mundo com o mundo confortável das pessoas corriqueiras, levando isso às últimas conseqüências. Um homem solitário e corajoso que receberá o epíteto de ‘monstro’, por negar-se a refletir os comportamentos aceitos e o pensamento estagnado que aquece os acomodados e até legitima essa inércia. Mas, nem todo mundo é todo mundo, e a mim parece que esta é a equação mais difícil de resolver na cabeça da chamada ‘maioria’. O pensamento gregário reluta em aceitar a originalidade, - vide a Arte - como se esta fosse fazer desmoronar o castelo de areia que foi construído com tanto esmero e paciência para que sirva de abrigo àqueles que não tem coragem de arriscar.  A vida é muito curta e preciosa para nos darmos ao luxo de alguma vez não saltarmos na vastidão negra de nossos abismos mais profundos, mesmo que lá nosso rosto assuma feições demoníacas. Mas, afinal, a quem interessa que não realizemos essa viagem fantástica da autodescoberta? Até mesmo ameaçando-nos com noções de inferno? Deixo a pergunta no ar.  Será mesmo que os arautos da Moral, aqueles que se beneficiam com ela, não possuem vãos escuros na chamada alma? Hmmm...  Bem, Rio Cercado, a cidade onde se desenrola esta estória, é uma localidade acomodada e corriqueira, que tem seu amado sossego quebrado quando percebe que o ‘outro’, o ‘invasor’ é ‘diferente’. A autonomia é algo perigoso aos acomodados e tem de ser, ou não é nada! Sendo planificada – a cidade - e  horizontal em comportamento, é logicamente acéfala [o fato de não ter um prefeito, ou, que este seja irrelevante na história, demonstra isso], porém, o inusitado faz com que algumas nuances humanas se desvelem, e alguns rostos apareçam por detrás das máscaras. Ficar agarrado ao lado apolíneo, desprezando e anatematizando, sempre, as deliciosas artes de Dionísio, só pode gerar pessoas pela metade. Pois bem, que cada um enxergue, então, até onde esse sol de Apolo alcance, e que seja um perigoso abismo o que for para mais além. Mas que nunca se esqueçam: existem  seres que carregam imensos abismos dentro de si, que brincam com luz e escuridão com a habilidade dos mestres! São os ‘diferentes’...  os diferentes dos chamados ‘bons’. O ‘bem’ é um rótulo que abriga todo tipo de hipocrisia, e é sob essa égide, e forçação de barra platônica, que toda uma canalhice existencial se esconde, e a História não nos deixa mentir: Sade nunca matou ninguém, mas era o libertino ‘mau’, já o ‘bom’ Robespierre... [...e não estou emitindo juízo moral aqui, só demonstrando quanto se pode ser hipócrita conforme as circunstâncias]. Pois é... é tudo uma questão de perspectiva [mais uma vez, dá-lhe Nietzsche!]. Bem e Mal são conceitos manobrados de acordo com o momento histórico e as conveniências, nada mais; porém, servirão sempre como esconderijo para todo tipo de gente. Quem não pode criar-se a si próprio, abriga-se sob as coisas e conceitos criados, paciência, mas isso não torna ninguém ‘melhor’, ah, isso não. Um homem versus a Cidade, a Cidade versus um homem, taí uma luta justa, o mau Renato Daemon contra a boa Rio Cercado e vice-versa, que cada contendor use as armas de que dispõe, da maneira que melhor lhe convier.     Enfim, espero que as pessoas inteligentes entendam as metáforas contidas neste livro, as demais, gostaria que ficassem longe dele, pois não faltariam acusações ao autor, tipo: tem uma mente psicopata! Mas... pensando bem, até que isso seria divertido, então a esses eu responderia... ou melhor... seria mais divertido, também, deixar esta resposta no ar...

 

 

 

 

                                                                                                           Roberto Axe

 

                     Porto Alegre, 17 de outubro de 2009.                                         

sexta-feira, 20 de julho de 2012

MEDICALIZAÇÃO



-         Doutor, estou apavorado!

-         Calma, calma...


-         Ontem... ontem... não sei como dizer... tive... tive ímpetos criativos!

-         Putz! Isso não é bom! mas fique tranqüilo já existe remédio. Continue.


-         Pois é... eu estava assistindo televisão, como sempre, quando determinada notícia me tocou profundamente...

-         Calma lá! Como assim, “profundamente”?


-         Não sei explicar. Tocou, tocou, fazer o que? Tocou. Senti alguma coisa em minha cabeça, parecia que se mexia... era uma espécie de volúpia, algo que precisava sair. Reconheço, com vergonha, que senti prazer naquilo, sei lá... parecia que tinha algo realmente se movimentando.

-         Droga! Provavelmente um pensamento, continue.


-         Então me levantei da poltrona, coisa que nunca faço, peguei um pedaço de papel e verti minha indignação na forma, na forma... não sei como dizer isso... na forma de um poema! Pronto falei!

-         Caramba, isso não é bom, mas espero, pelo menos, que dentro de preceitos alexandrinos!


-         Sei lá o que é isso, doutor! Só me expressei, e, diga-se de passagem, preenchi cinco páginas. Eu criei, doutor, criei, vê se pode! Tem cura?

-         Já tem remédio, fique tranqüilo.


-         Ufa! Que alívio....

-         Sobre o que escreveu?


-         Bem eu questionei o ...

-         Você o quê?


-         Questionei o ...

-         Já chega, para mim está bom. Olhe, começa assim, questiona ali, questiona aqui e daqui um pouco você corre o risco de adquirir ‘pensamento crítico’, e lhe garanto, taí uma moléstia difícil de sanar. Bem, você está com sintomas de tendência criativa, está no começo dá para curar. Vou lhe receitar alguns remédios que você sempre encontrará em qualquer farmácia, mas lembre-se: a loucura começa assim, hein? E mais, nunca, em hipótese alguma leia Foucault, entendido?

-         Ler quem?


-         Nada, nada, deixa pra lá.

-         Mas não é tudo, doutor.


-         Não acredito, tem mais?

-         Sim, é que...bem, como o senhor pode ver, sou um homem já em idade avançada, pois é... pasme doutor... eu... eu... eu... eu nunca broxei! e pior, minha libido tá sempre a mil! Estou muito preocupado, doutor, muito preocupado, não é normal isso na minha idade...


-         Não é normal, mas não se envergonhe, já tem remédio, fique tranqüilo... já tem remédio...

quarta-feira, 18 de julho de 2012

O INIMIGO

O INIMIGO VAI VOLTAR!


 Esta frase grifada em vermelho na parede enegrecida da repartição às vezes instigava a imaginação de Júlio. Em meio ao bate-bate das máquinas de escrever, que não paravam nunca, Júlio às vezes raciocinava... “O Inimigo vai voltar...” O inimigo vai voltar? Mas... o inimigo já andou entre nós? Como assim vai voltar? Afinal, quem é o inimigo? Esses devaneios lhe causavam vergonha, pois sempre os interrompia quando percebia que o som sempre sério das máquinas havia parado, e seus colegas, sentados às suas mesas, o fitavam de maneira estranha.

 Olhos mortos.

 A repartição era escura, quase não tinha cor [seja lá o que isso – cor - quisesse dizer], Júlio não conhecia essas coisas, apenas batia relatórios em sua velha máquina... tac tac tac tac tac tac e então uma sensação de segurança lhe acalentava a alma, era um tac tac tac tac tac tac tac em consonância com os demais, era algo harmônico , todos juntos tac tac tac...

 O Inimigo vai voltar...

 “Como assim? Quem é ele? Quem é ele?” Seu olhar perdido no nada... “Quem é ele?”

 Pronto. Máquinas paradas. Mais uma vez o peso dos olhares sobre si.

 Olhos mortos.

 Desconforto total.Um colega se pôs em pé, perfilado feito um militar, e em seguida retirou-se da sala. Sem demora já estava de volta acompanhado do chefe; este botou a mão no ombro de Júlio e fez um sinal com a cabeça. Saíram. As máquinas retomaram seus ritmos monocórdios... tac tac tac tac tac tac...

 Já na sala do chefe, este o inquiriu. “Afinal? O que estava havendo com ele, Júlio, sempre funcionário tão bom? Não era admissível desviar os olhos das tarefas, ou seja, dos relatórios, e perder-se em pensamentos, com o olhar solto no nada, como assim? E as tarefas? E as tarefas? Que tomasse jeito então, afinal, isso não parecia bom exemplo para os demais.“Já pode ir”

 Tac tac tac tac tac tac...

 Mas aquela frase na parede não lhe saía da cabeça.

 Cabeça?

 Cabeça?

 Cabeça,

 cabeça, cabeça, cabeça tac tac tac tac... Por que um inimigo? Quem poderia ser inimigo daqueles inócuos relatórios? Daquelas pessoas cabisbaixas tão ciosas de seus afazeres. Afinal, às dezoito horas – sempre, sempre - tocava a sirene e todos rumavam ordeiros para suas casas, jantavam e deitavam suas cabeças em seus travesseiros... suas cabeças? cabeças? cabeças, cabeças, tac tac tac...

 Dezoito horas. Sirene.

 Naquele dia Júlio não foi para casa.
 Bebeu vinho
 perambulou
 pensou
 riu
riu mais
bebeu mais vinho
caminhou
 correu
 pulou
sonhou
 dormiu de ressaca...

 Oito da manhã. Sirene.

 Tac tac tac tac tac tac...

 Júlio sentiu a mão do chefe em seu ombro; levantou-se e acompanhado daquele homem taciturno e mal-encarado, desapareceu pela porta. Minutos depois a senhora da limpeza entrou na repartição com balde, esfregão, e indiferença; então esfregou, esfregou, até desaparecer os dizeres da parede. Ninguém desviou os olhos dos relatórios.

 Tac tac tac tac tac tac...

 Júlio nunca mais foi visto.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

A ROUPA DO MORTO

...e eu aqui deitado imóvel parado... devidamente paramentado, com gente deste e daquele lado...vejo rostos desconsolados [e outros meio gozados...] Cabeças que me olham do alto...A Vera tá usando salto? Tem gente que não conheci, tem outros que não vejo aqui, não sabem que morri. Sinto-me um pouco humilhado, por todos assim olhado. E a roupa com a qual me vestiram? Tiveram nenhum cuidado! Até o sapato se duvidar tá furado! E lá fora? Ou muito me engano ou é gargalhada! É gente contando piada! Ou... [é só o que faltava] a sola do meu sapato... tá mesmo arruinada! Agora me encara a Rosinha, putinha, alisa minha gravata, que me deu de presente em não me lembro que data; se a patroa descobre me mata! - Ops! Em tempo a errata! E o Osório, coitado, deixou este paletó por lágrimas melado; quantas vezes no meu ombro chorou seus infortúnios, o desgraçado. Levo comigo seu DNA desconsolado - mas hoje não vi lágrima cair do teu olho, danado! ...e esta minha camisa, que usei na formatura da minha filha, quem diria, me acompanhará na escura e fria trilha... [Falar nisso, cadê a Marília?] ...e minhas cuecas, putz! Me puseram uma “samba-canção” talvez pra santificar o defunto, que quando morto vira santo... ahã, nessa não caio não. E esse de pé aqui ao lado, ri miudinho, o putinho, ainda vai me derrubar a porra do cafezinho! Entornar em minhas calças, presente da patroa que garantiu, ficaram boas pra eu usar no próximo verão. Calça boa, de algodão. Pra onde vou, amor, preciso de calça não! Mas vá lá... prêmio consolação. Até minhas meias, que comprei em Paris, [ah os bons tempos...] parecem rir nos meus pés como quem diz: “me compraste por me achares grossa e quente, para aquecer os teus pés, seu mentiroso demente!Olha agora a ‘fria’ em puseste a gente! “ Até um lencinho de seda, mimo singelo de meu casamento, está aqui no meu bolso, murchando triste e lento... – Vai comigo meu filho, lamento... lamento... Estranha essa gente, olha pra mim, pra minha roupa, e comentários não poupa: “Não tava bem o finado; olha só, o sapato furado” ou “Esse paletó tá danado!”. É, mas quando ainda vivia, e de dinheiro não carecia, tirei muita gente de fria! É... os vivos têm cada mania! e... Tem gente que entra e tem gente que sai. Tem gente que vem e tem gente que vai. Tem quem não se dê conta, que se distrai, e por curiosidade se trai; toca na mão do morto pra sentir a temperatura... acaricia, sente a textura... Opa! Agora gostei! Vejo aproximar-se pequena multidão. Finalmente! Choram, gemem, vejo até empurrão. Na certa reconheceram no morto o bom cidadão! Que bom! Que bom! É pingo de lágrima na lapela, é beijo, beijinho, beijão! Mas... Pura ilusão... é só o momento de fechar o caixão... [A todos peço perdão, por encerrar esse relato assim, de supetão!]