quarta-feira, 24 de março de 2010

O PINGO

Era na hora das refeições que a tensão se abatia sobre aquela familia. Na comprida mesa, todos se reuniam para comer sob o olhar severo do patriarca. Um homem duro, que não gostava de conversas durante as refeições, e era obedecido. Todos comiam obedientes, cabeça baixa, e só mesmo o ruído dos talheres nos pratos eram percebidos. Na cabeceira da mesa o pai, ao lado a mãe, do outro lado a filha mais velha e depois as duas meninas menores. Desde pequenas eram alertadas para os momentos 'cruciais' do dia. - Na mesa, educação e silêncio - que nunca esquecessem disto. Havia ainda um problema maior: a toalha de mesa. Não era raro ver o patriarca com o olhar congelado na direção de algum garfo, durante o temeroso trajeto do prato para a boca. Não admitia nenhuma mácula na toalha de mesa, um farelo de pão, nada. Então chegou um dia em que a preocupação atingiu seu ponto máximo: o novo namorado da filha mais velha iria, finalmente, almoçar com a familia naquela mesa tão cheia de recomendações. A coisa piorava por conta de ser Domingo, dia de usar a toalha de linho branca com belos brocados dourados. A moça fez todas as recomendações ao rapaz, pois todo o cuidado era pouco. Chegou a hora, todos sentaram sob o olhar autoritário do pai, a tensão era imensa, e o silêncio de sempre permeava os gestos calculados com que os guardanapos eram colocados nos colos. Tão logo começaram a comer, silentes, o rapaz percebeu no olhar do homem na cabeceira um aviso mudo, que tivesse muito cuidado então. Procurou no sorriso de sua amada à sua frente o alívio para aquela situação constrangedora, mas, aos poucos viu o semblante alegre da namorada ir minguando; ao olhar para as outras pessoas na mesa percebeu que sua mão era alvo de olhares apavorados; caprichosamente, um pingo de molho começava a formar-se embaixo de seu garfo, refém do abraço inexorável da Lei da Gravidade. Ficou imóvel, se tentasse deslocar o talher até o solo seguro do prato, o pingo poderia cair, qualquer gesto poderia fazer o pingo cair, sua respiração poderia fazer o pingo cair... O patriarca tinha os olhos fixos naquela catástrofe iminente, e os demais deslocavam seus olhos com vagar do pai para o pingo... do pingo para o pai... mas o desastre era irreversível, já não havia volta... E o pingo pingou. Tal qual um tiro assassino que deixasse sua marca de sangue em uma camisa muito branca. Agora todos olhavam para o pingo na toalha. Um pequeno ponto vermelho redondo e ruidoso, como que a desafiar a autoridade imaculada daquela brancura inelutável e infinita. Lentamente, todos foram virando seus rostos a um só tempo, como se aquilo fosse ensaiado, em direção ao pai. O homem estava vermelho e sua veia jugular palpitava uma tempestade com conseqüências incalculáveis. O rapaz tremia. O silêncio que revestia aqueles segundos dava um ar de eternidade ao tempo. Tudo agora estava suspenso, inclusive as respirações. Foi quando o patriarca tirou os olhos do pingo e os perdeu no nada. Ficou parado, estático. Sua boca foi abrindo lentamente e para surpresa de todos um sorriso se achegou manso ao semblante sempre fechado daquele homem, em seguida riu, e logo depois explodiu em uma imensa gargalhada! Gargalhava, gargalhava, e todos, aliviados começaram a rir também, no começo risos meio tímidos, mas depois gargalhavam a valer também. O homem só dava rápidas paradas em seu riso frenético para olhar e apontar para o pingo ali na toalha, e logo seguia com as ruidosas gargalhadas. Dizem as boas línguas que nesse dia dava para escutar as risadas lá do outro lado da rua. Dizem mais, dizem também que depois daquele pingo aquela familia nunca mais foi a mesma.

segunda-feira, 15 de março de 2010

O POTE

- Nunca mexa neste pote - dizia o pai com o pote na mão - mas se um dia o fizer, arque com as conseqüências! - escutou várias vezes esta frase quando era garoto. O pai fazia a recomendação com tal seriedade, que com o passar do tempo, nem perto do pote ele passava. Não foram poucas as vezes que olhava para aquele pote com raiva; por que não podia pegá-lo? Que implicância era essa de seu pai em relação a ele e aquele objeto? Um pote comum, de louça branca, que não tinha nada de mais? Restou disso tudo uma espécie de trauma, bem como, uma curiosidade infinita: o que lhe aconteceria, afinal, se o desobedecesse e pegasse em suas mãos a misteriosa peça? Lembrava da voz do progenitor basicamente por causa da recomendação do pote; não era de falar muito,o velho, era, até mesmo, um homem solitário. Lembrava do pai sentado na sala, só, fumando seu cachimbo. Ficava horas absorto observando a fumaça azulada; no que estaria pensando? O tempo passou, casou, teve filhos, o velho pai se foi... e ele nunca tocou naquele pote. O pote estava agora em sua casa, jazendo no fundo de um armário, embrulhado em papel. Sua esposa embrulhou a peça rapidamente, pois ele não queria saber daquilo, afinal, não era para ficar longe? Sempre fora obediente ao velho pai, e embora não soubesse o 'por que', respeitava seu pedido, ou ordem, nem sabia direito. A verdade é que aquilo sempre lhe incomodou, não era possível depois desse tempo todo ainda remoer esse assunto, mas ele remoía. Um dia, no trabalho, pensava no pote quando algo lhe ocorreu: seu pai dizia - Nunca mexa nesse pote, mas se um dia o fizer, arque com as conseqüências. - Ora, já não era um menino! Seu pai há muito tempo já não estava neste mundo! Sim, arcaria com as conseqüências! Estava decidido, tão logo chegasse em casa, pegaria o pote e, mais que isto, o colocaria no centro da mesa de jantar como uma espécie de troféu pela sua ousadia. Quando chegou em casa estava nervoso, cumprimentou rapidamente a mulher, os filhos e foi ao seu quarto, trancando-se à chave para ficar mais à vontade com seus fantasmas. Abriu o armário e esticou seu braço até pegar o pote embrulhado atrás de algumas blusas de lã dobradas. Tremia. Sentou-se na cama com o maior mistério de sua infância nas mãos, procurou não pensar no velho, abriu o embrulho e quando retirou a tampa do pote viu um papelzinho dobrado, amarelado pelo tempo... Seus olhos ficaram paralisados por um momento. Então, com calma ele abriu o bilhete, ali se lia: VOCÊ ESTÁ LIVRE! Reconheceu a caligrafia do pai, e naquele momento sentiu que livrava-se do imenso peso que sempre o acompanhara em sua existência.Faziam, ambos, pai e filho, uma reconciliação muda, através justamente da transgressão, mesmo tardia, da ordem dada. Aquelas três palavras naquele sucinto bilhete eram a chave para todo o seu passado, e... para seu futuro. - Então... - pensou ele - meu pai era um brincalhão? dado a enigmas? Um homem misterioso e com um lado lúdico que nunca conheci? Ou, ainda, quem sabe, um sábio? Droga, por que não abri este pote antes! - se emocionou. Sim, arcaria com as conseqüências de ser livre,segundo aquela zelosa recomendação, e com a responsabilidade que a verdadeira liberdade traz. A partir desta descoberta sua vida mudou. Estava mais alegre, tranqüilo... e desenvolveu o hábito de ao deitar, pensar em sua infância, no relacionamento distante com o pai; lembrar de conversas, procurar outros indícios, metáforas, qualquer coisa... enfim, garimpar outras pequenas pistas que o velho tenha deixado, tal qual pequenas migalhas de pão em uma floresta, para que o filho, talvez um dia, encontrasse o caminho até seu duro, solitário, misterioso, mas nunca fechado coração...

domingo, 14 de março de 2010

O MORIBUNDO

Seu amigo estava morrendo. Entrou no quarto do hospital e o encontrou ali,deitado, abatido, magro, nas últimas. Achou melhor não falar nada. Deixou as flores que levara em uma mesa de canto, só estavam os dois. Olhou novamente para aquele homem de olhar longínquo, tão débil, e não pode deixar de lembrar de todos aqueles anos passados. Foram muito amigos, embora ultimamente a vida os tenha colocado em caminhos muito diferentes. O moribundo ali, atirado para morrer, que ironia, sempre fora um homem de espírito positivo, um otimista inveterado, um sonhador até. Já ele não. Era tido como 'pessimista', havia até quem dissesse que era 'agourento'. - É o que dá... ter os pés no chão, não fugir da fria e inexorável realidade, de que valeu todo seu espírito otimista? - pensou. Aquela visita era quase uma vitória. - Nosso time joga na quinta. - disse, quebrando o gelo, mas logo se deu conta da gafe: era domingo, talvez o moribundo não estivesse neste mundo na quinta. O homem na cama não falava nada, apenas acompanhava, através de seus olhos afundados em olheiras, os movimentos do amigo pelo quarto. Não encontrando nada para dizer, o visitante parou em frente à janela e perdeu o olhar no movimento ruidoso da vida lá fora. Era um homem de hábitos.Imaginava que teria de quebrar sua preciosa rotina para ir a um velório, detestava velórios. Bem, se o moribundo morresse durante o dia, estaria trabalhando, era uma bela desculpa. Se fosse à noite, aí nem pensar, via sua novela e depois recolhia-se ao leito; e de madrugada em hipótese alguma saía de casa. Estava decidido, inventaria uma desculpa, mas não arredaria pé de sua tranqüila rotina. Resolveu que já não tinha mais nada a fazer ali; caminhou silencioso até a cama do amigo e inclinou-se lentamente, até seus olhos frios encontrarem o olhar embaçado e patético do doente, aproximou bem o rosto, para que o 'otimista' constatasse o brilho duro daquele olhar. Por alguns segundos mantiveram olhos nos olhos e uma lágrima desceu solitária pela face do moribundo, enquanto a ponta de um sorriso se fez notar nos lábios do visitante. Sentiu uma agradável sensação de vitória, já podia ir embora para o abraço morno de sua rotina. Saiu do quarto, desceu no elevador, atravessou o saguão, sempre pensando se o que fizera era o correto. Sim, sim, era o certo, não podia fraquejar agora. Já estava na rua, distraido por estes pensamentos, quando ao atravessá-la foi colhido por um automóvel. Morreu na hora. No dia seguinte, em seu velório, o caixão jazia solitário na capela mortuária quando o moribundo apareceu em uma cadeira de rodas, conduzido por dois enfermeiros. Um deles, só para carregar o soro. Estacionou, consternado, em frente ao caixão. Fez um sinal com sua mão trêmula e o outro enfermeiro inclinou-se, quase encostando sua orelha na boca do paciente, este então sussurrou com sua voz nas últimas: - Ele esteve lá no hospital ontem. Que tragédia. Sabe, eu pressenti algo ruim. Sim, quando nos despedimos, sei lá... meu coração apertou, me emocionei. Naquele momento eu tive certeza que aquela era a última vez... - traido pela emoção, começou a chorar. Encontrou forças ainda para dizer suas últimas palavras: - Sentirei saudades...

sexta-feira, 12 de março de 2010

O ESPELHO

O espelho era a primeira coisa que avistava com interesse, tão logo levantava pela manhã. Ao sair do quarto, ainda zonzo pelo sono, ia direto ao banheiro, lá olhava através do espelho para sua cara desarrumada. Foi numa manhã dessas, quando fazia a barba,que foi acometido por um estranho raciocínio: aquele pedaço quadrado de vidro à sua frente era onde havia pousado seus olhos ainda confusos, todas as manhãs, nos últimos quarenta anos. Quarenta anos!Desde que começou a acordar cedo para ir trabalhar. Ficou extático olhando-se nos olhos com o aparelho de barba suspenso ao lado do rosto lambuzado pela espuma. Quarenta anos! Aquele espelho ali à sua frente, tão próximo e íntimo, viu tudo! Seu rosto envelheceu aos poucos, mas aquele espelho, amigo fiel, não deixou que percebesse. Mas agora percebia. Afoito, Removeu o creme com a toalha, enxaguou o rosto e olhou-se com atenção. Envelhecera. Mas, por que só agora se dava conta? Um sorriso, então, se achegou manso emprestando sua luz serena àquele rosto já sulcado e começando a mostrar sinais de cansaço. Reparou nas pequenas rugas ao redor dos olhos, reparou também em alguns sinais que não tinha, presente indigesto com o qual o tempo lhe bridara. Por que? - pensou - só agora percebia tudo isto? Envelheceu e não viu. Sorriu novamente, um sorriso meio amargo é verdade, mas um singelo reconhecimento a este, que agora reconhecia, sempre fora seu melhor amigo. Não, não podia culpar o espelho pelo tempo que passou e deixou suas marcas ao redor de seu olhos. Na verdade, ingrato era ele, que ao passar do tempo nunca olhou para seu amigo fiel. Egoísta, sempre viu a si mesmo através do espelho, nunca vira o espelho, só a sua imagem refletida nele. Agora reparava com calma, quase carinhosamente naquele vidro tão próximo, tão comum... tão corriqueiro... tão banal... que nunca foi merecedor de sua atenção. Ficou envergonhado. Sim, envelheceu, mas seu amigo, o espelho, na sua frieza neutra e caprichosa, nunca deixou que percebesse...

quinta-feira, 11 de março de 2010

A PORTA

Odiava portas. Tudo que 'fecha e têm dois lados' lhe preocupava, mais que isto, lhe tirava o sono. O que havia por detrás da porta? Quem poderia saber! Dormia de porta aberta, pois se a fechasse, imaginava o que estaria se passando do outro lado, e vice-versa; também não podia ver quartos fechados sem que sua imaginação se pusesse a trabalhar freneticamente. Afinal, o que há do outro lado da porta? Até que ponto, o que não via podia assustá-lo tanto?Quando deitava demorava a dormir, pois mesmo com a porta do quarto aberta, como sempre, perdia o sono por conta do exíguo espaço entre a porta e a parede, sim, mesmo aquela pequena sombra que restava deveria portar seus mistérios. Não gostava de mistério.Gostava das coisas às claras, bem iluminadas pelo Sol; coisas que podia ver. - por que inventaram as portas? o que tanto precisam esconder? Que intimidades bizarras precisam ser 'varridas' para trás de uma porta? - certa vez experimentou um alívio filosófico: de tanto pensar no assunto descobriu que pelo menos sabia o que se encontrava atrás de um lado da porta: ele mesmo!já era um começo. Mas quando concluiu que metade do mistério estava resolvido, algo lhe ocorreu; havia sobrado 50% do problema!As coisas pioraram. Já não conseguia dormir. Numa de suas vigílias teve um estalo!O Problema não é o 'outro lado' e sim, 'a porta'! Levantou, estourou champanha, dançou de felicidade! Finalmente a partir de agora haveria de dormir! Não perdeu tempo: retirou as portas de sua casa e teve prazer maior quando o fez em seu quarto. Embriagado pela alegria, naquela noite sem portas, dormiu como um anjo... ou talvez, como um demônio...

quarta-feira, 10 de março de 2010

BBB - Eleições 2010!

Noventa e dois milhões de ligações! Sim, você leu bem. 92 milhões. Este foi o - incrível - número de ligações telefônicas que um dos últimos 'paredões' do chamado Big Brother Brasil amealhou junto ao atento povo brasileiro. Puxa! Fiquei impressionado! Enfim, algo tem o condão de 'mexer' com a população, tirá-la da sua proverBIAL apatia no tocante às coisas 'deste País'. Ora... ora...as eleições estão aí! Fica aqui, Presidente, a minha sugestão. Sim, tudo é entretenimento hoje em dia! Por que sacrificar nosso Povo com coisas sérias e chatas como eleições? Além, claro, da tarefa cansativa e incômoda de ter que se locomover até aquelas filas odiosas perante as urnas - eletrônicas, vá lá... - atrapalhando o dia? Estamos na era digital, Presidente! Veja o BBB. Votos por celular, etc... não é uma boa? 92 milhões, Presidente! Está provado que funciona! Bem, minha sugestão: o BBB - Eleições 2010! por que não? O único incômodo seria ceder a Granja do Torto. Sim, a Granja do Torto, sabe como é... para já irem se acostumando, os candidatos, afinal, um deles será o escolhido. Bom, a partir daí é só botar os candidatos trancados na 'Granja' por dois meses imediatamente anteriores ao dia do Pleito. Não é uma boa? Todos os postulantes na 'casa' sendo monitorados pelo Povo, 24 horas por dia; existe melhor maneira de conhecê-los profundamente? Sim, conhecê-los nos menores detalhes: suas manias, pequenos vícios, birras... suas intimidades mais incômodas, etc...Saberemos também como respondem às situações mais extremas, sabe como é... muita pressão, convivência com adversários e, enfim, tantas outras mazelas que descobriremos ávidos. Minha sugestão: cada semana, um no paredão! É certo que os chamados 'nanicos' deverão ser os primeiros a serem 'defenestrados' da casa, mas paciência... é a Democracia. Imagino - futurologia, Presidente, não leve muito a sério - que deverão 'sobrar' o Serra, a Dilma e o Ciro, é o que penso. Ai ai ai, as últimas três semanas seriam eletrizantes! Se pode até pensar em conceder os tais 'pontos eletrônicos' para que os marqueteiros possam assessorar, ao pé do ouvido, seus clientes. O povo não vê o ponto eletrônico, Presidente, pode ter certeza que dá certo. O problema nessas últimas semanas do programa, perdão, da campanha, será administrar possíveis animosidades entre a Dilma e o Ciro - temperamentos fortes, entende? -. Penso eu, que essas rusgas serão contemporizadas pelo Serra, o problema é que ele vai separar as brigas fazendo discursos sobre tolerância, mas o fará olhando para as câmeras, aí não pode! Por isso o ponto eletrônico, compreende, Presidente? Assessoria 'real time', não é Fantástico, perdão, fantástico? O final da história é aquele: quem sobrar leva! Não deixo por menos: 200 milhões de ligações - no último Paredão - ah, ia me esquecendo, e isto é importante: a emissora até pode ser a Globo, afinal... né? Mas o apresentador não pode ser o Bial. Não, não, tem que ser o presidente do TSE, fica uma coisa mais séria, o senhor não acha? Bem, está aí a minha sugestão. Eleições com entretenimento.Sem falar na economia que poderá ser feita, pois todos sabem o quanto é dispendiosa uma eleição 'normal'. Dá tempo, Presidente; aí, quem sabe, finalmente, possamos inverter a lógica e tirar o 'controle' das mãos dos políticos, bem como, nossas cabeças do 'paredão'.

Pra frente Brasil! (não do Paredão!)

Roberto Axe