sexta-feira, 20 de julho de 2012

MEDICALIZAÇÃO



-         Doutor, estou apavorado!

-         Calma, calma...


-         Ontem... ontem... não sei como dizer... tive... tive ímpetos criativos!

-         Putz! Isso não é bom! mas fique tranqüilo já existe remédio. Continue.


-         Pois é... eu estava assistindo televisão, como sempre, quando determinada notícia me tocou profundamente...

-         Calma lá! Como assim, “profundamente”?


-         Não sei explicar. Tocou, tocou, fazer o que? Tocou. Senti alguma coisa em minha cabeça, parecia que se mexia... era uma espécie de volúpia, algo que precisava sair. Reconheço, com vergonha, que senti prazer naquilo, sei lá... parecia que tinha algo realmente se movimentando.

-         Droga! Provavelmente um pensamento, continue.


-         Então me levantei da poltrona, coisa que nunca faço, peguei um pedaço de papel e verti minha indignação na forma, na forma... não sei como dizer isso... na forma de um poema! Pronto falei!

-         Caramba, isso não é bom, mas espero, pelo menos, que dentro de preceitos alexandrinos!


-         Sei lá o que é isso, doutor! Só me expressei, e, diga-se de passagem, preenchi cinco páginas. Eu criei, doutor, criei, vê se pode! Tem cura?

-         Já tem remédio, fique tranqüilo.


-         Ufa! Que alívio....

-         Sobre o que escreveu?


-         Bem eu questionei o ...

-         Você o quê?


-         Questionei o ...

-         Já chega, para mim está bom. Olhe, começa assim, questiona ali, questiona aqui e daqui um pouco você corre o risco de adquirir ‘pensamento crítico’, e lhe garanto, taí uma moléstia difícil de sanar. Bem, você está com sintomas de tendência criativa, está no começo dá para curar. Vou lhe receitar alguns remédios que você sempre encontrará em qualquer farmácia, mas lembre-se: a loucura começa assim, hein? E mais, nunca, em hipótese alguma leia Foucault, entendido?

-         Ler quem?


-         Nada, nada, deixa pra lá.

-         Mas não é tudo, doutor.


-         Não acredito, tem mais?

-         Sim, é que...bem, como o senhor pode ver, sou um homem já em idade avançada, pois é... pasme doutor... eu... eu... eu... eu nunca broxei! e pior, minha libido tá sempre a mil! Estou muito preocupado, doutor, muito preocupado, não é normal isso na minha idade...


-         Não é normal, mas não se envergonhe, já tem remédio, fique tranqüilo... já tem remédio...

quarta-feira, 18 de julho de 2012

O INIMIGO

O INIMIGO VAI VOLTAR!


 Esta frase grifada em vermelho na parede enegrecida da repartição às vezes instigava a imaginação de Júlio. Em meio ao bate-bate das máquinas de escrever, que não paravam nunca, Júlio às vezes raciocinava... “O Inimigo vai voltar...” O inimigo vai voltar? Mas... o inimigo já andou entre nós? Como assim vai voltar? Afinal, quem é o inimigo? Esses devaneios lhe causavam vergonha, pois sempre os interrompia quando percebia que o som sempre sério das máquinas havia parado, e seus colegas, sentados às suas mesas, o fitavam de maneira estranha.

 Olhos mortos.

 A repartição era escura, quase não tinha cor [seja lá o que isso – cor - quisesse dizer], Júlio não conhecia essas coisas, apenas batia relatórios em sua velha máquina... tac tac tac tac tac tac e então uma sensação de segurança lhe acalentava a alma, era um tac tac tac tac tac tac tac em consonância com os demais, era algo harmônico , todos juntos tac tac tac...

 O Inimigo vai voltar...

 “Como assim? Quem é ele? Quem é ele?” Seu olhar perdido no nada... “Quem é ele?”

 Pronto. Máquinas paradas. Mais uma vez o peso dos olhares sobre si.

 Olhos mortos.

 Desconforto total.Um colega se pôs em pé, perfilado feito um militar, e em seguida retirou-se da sala. Sem demora já estava de volta acompanhado do chefe; este botou a mão no ombro de Júlio e fez um sinal com a cabeça. Saíram. As máquinas retomaram seus ritmos monocórdios... tac tac tac tac tac tac...

 Já na sala do chefe, este o inquiriu. “Afinal? O que estava havendo com ele, Júlio, sempre funcionário tão bom? Não era admissível desviar os olhos das tarefas, ou seja, dos relatórios, e perder-se em pensamentos, com o olhar solto no nada, como assim? E as tarefas? E as tarefas? Que tomasse jeito então, afinal, isso não parecia bom exemplo para os demais.“Já pode ir”

 Tac tac tac tac tac tac...

 Mas aquela frase na parede não lhe saía da cabeça.

 Cabeça?

 Cabeça?

 Cabeça,

 cabeça, cabeça, cabeça tac tac tac tac... Por que um inimigo? Quem poderia ser inimigo daqueles inócuos relatórios? Daquelas pessoas cabisbaixas tão ciosas de seus afazeres. Afinal, às dezoito horas – sempre, sempre - tocava a sirene e todos rumavam ordeiros para suas casas, jantavam e deitavam suas cabeças em seus travesseiros... suas cabeças? cabeças? cabeças, cabeças, tac tac tac...

 Dezoito horas. Sirene.

 Naquele dia Júlio não foi para casa.
 Bebeu vinho
 perambulou
 pensou
 riu
riu mais
bebeu mais vinho
caminhou
 correu
 pulou
sonhou
 dormiu de ressaca...

 Oito da manhã. Sirene.

 Tac tac tac tac tac tac...

 Júlio sentiu a mão do chefe em seu ombro; levantou-se e acompanhado daquele homem taciturno e mal-encarado, desapareceu pela porta. Minutos depois a senhora da limpeza entrou na repartição com balde, esfregão, e indiferença; então esfregou, esfregou, até desaparecer os dizeres da parede. Ninguém desviou os olhos dos relatórios.

 Tac tac tac tac tac tac...

 Júlio nunca mais foi visto.