quarta-feira, 19 de maio de 2010

A FILOSOFIA DO DIABO - SINOPSE


Tito é um jovem policial que pela primeira vez está na cena de um crime. Tudo é novidade para o curioso novato; porém ele não contava em conhecer no local, uma estranha figura surgida do nada, ou talvez de algum recanto alhures. Um homem negro, de chapéu inclinado na cabeça e que de tão embriagado precisa estar amparado permanentemente por um fiel ajudante. Seu nome é Epaminondas. Epaminondas é um ex-policial aposentado por alcoolismo, que comparece misteriosamente nas cenas de crimes quando chamado pelos investigadores. Sabe-se lá por quais estranhos dons, Epaminondas desvenda os crime na hora e já aponta o culpado, evitando o cansativo trabalho de investigação para os antigos colegas. Tito fica fascinado pelo enigmático ex-policial e decide conhecê-lo mais de perto; para tanto contará inicialmente com a ajuda de sua colega e amante Nina, policial mais antiga e experiente. Mas Nina em seguida pula fora da empreitada, julgando-a perigosa, pois Epaminondas é tido como homem perigoso e imprevisível. Tito segue seu intento e penetra em um mundo demoníaco, perigoso e fascinante, o mundo da sombra, o mundo de Epaminondas. Muitas coisas serão reveladas a Tito neste encontro inusitado na escuridão, porém, o que ele não sabia é que isto mudaria radicalmente sua vida...


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quarta-feira, 14 de abril de 2010

A FILOSOFIA DO DIABO


PREFÁCIO



Napoleão dizia: raspe um russo e por baixo aparecerá o cossaco! Esta frase sempre me inspirou alguns pensamentos. Qual o sujeito que apareceria se raspássemos um civilizado? Acho que quem mais aproximou o rosto deste quadro foi Freud. Fica difícil, ao analisarmos nosso dia a dia, não entregar o cetro ao pai da psicanálise. Mas então somos obrigados a admitir que subjaz abaixo dessa tenra roupagem, uma força invisível, para a qual se fazem necessárias todas as formas de jogos e interpretações com o fito de decifra-la e distraí-la. Por que? É tão forte assim? É tão terrível assim? Então por que não incorporamos esta força definitivamente como nossa? Como um poder atávico do animal que levamos conosco por onde quer que andemos, embora ferido por lanças invisíveis, mas poderosas. Se olharmos mais atentamente para as mãos dos portadores destas lanças, veremos que elas estão vazias, as lanças não existem, apenas nos fizeram crer em suas pontas envenenadas. Por que tanto medo do animal? Por que anatematiza-lo? Por que ser ele a fonte de todo o ‘Mal’? Não é preciso ir longe para encontrarmos a resposta, é simples: os instintos são o inimigo mortal desta grande acomodação organizacional chamada sociedade. E não são poucas as distrações e arranjos que os instintos mais poderosos observam com seus olhos extáticos e atentos, como os de uma serpente. Quem não é do ‘ramo’ fica entre o espanto e o riso ante a pantomima sem a qual esse grande negócio não iria para frente, esse grande negócio que tem por essência a manutenção do ‘ser humano’ fora do ‘ser’. Afinal o que é ‘ser’? Ora, uma discussão ontológica reservada aos filósofos da teoria! Tudo muito bonito, muito erudito! Mas, enquanto isso a serpente de olhos extáticos e atentos continua lá... alheia, perigosa, segregada, observadora silenciosa... sempre varrida para baixo do imenso tapete platônico/teológico. Que este extenso e invisível tapete abrigue os que se subtraem ao seu ‘inodoro’ calor, vá lá, é a grande multidão dos friorentos! Porém, existem os animais selvagens que amam a neve! Eles se desvelam e saem lentamente debaixo deste abrigo aconchegante e vão à caça, animais de rapina que são... animais curiosos, animais de andar lento e olhos de fogo! Ferinos de calmos e belos gestos. É preciso então que não saiam! É preciso encontrar sempre uma ameaça, sim, mais uma ameaça... Pois quem não tem medo do frio é porque é feito de fogo! Então se cria o inferno, lugar de fogo é no inferno! Mas é cada vez mais difícil dormir embaixo do imenso e tépido tapete, pois à noite os risos demoníacos lá de fora anunciam uma alegria que não é tolerada, não pode ser tolerada, este riso desafiador dos ferinos de fogo... e seus insuportáveis hálitos de liberdade! Este livro é dedicado a todos aqueles que andam na neve, quem sabe até derretendo-a com seus passos incandescentes e descobrindo a relva mansa que subjaz tranqüila sob seus pés descalços. Daí então possivelmente estes correrão, saltarão, darão cambotas, pularão, dançarão, darão muitas risadas e quando finalmente estiverem vencidos pelo cansaço de tanta alegria, abrirão suas imensas asas e voarão para onde o infinito melhor lhes aprouver. Enquanto isso, muitas doutrinas serão ‘ensinadas’ lá embaixo do Grande Tapete; agora não só o fogo deverá ser evitado como pestilência, agora, também deverão ser evitadas... as asas. Talvez então o coro exclame em uma só voz: ‘Maldito seja, todo aquele que é feito de fogo! Maldito seja, todo aquele que voa!’, mas todos nós já estaremos longe demais para escutarmos as vozes uníssonas desse patético coro, nada do que nos pertence e nos faz mais fortes pode ser varrido para baixo desse tapete incolor e mortiço, até porque, teríamos então que quebrar nossas imensas asas de morcego para caber embaixo de qualquer coisa.

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terça-feira, 13 de abril de 2010

O QUADRO

A velha tinha saudade de quando era velha... agora julgava-se 'muito velha'. Passava os dias ali, sentada na cadeira junto à janela de sua pequena casa. Era uma observadora silenciosa da vida que brotava, incessante e indomável, através dos ruidosos risos das crianças que brincavam alheias pela rua. Ela ali, sentada, só olhava para fora... a seu lado o baú imaginário em que guardara suas infinitas lembranças, e que agora acomodava, zelosa, os instantes estéreis e sem cor de seu dia a dia. Acondicionava os segundos com carinho neste baú invisível e inseparável, pois haveria de ser ele o companheiro em sua última e definitiva viagem. Ou não. Ficara íntima da morte, até conversava com ela; certa vez se flagrou servindo chá para dois, quando se deu conta, riu. Foi a última vez que riu. Não encontrava mais motivo para risos, já não conversava com ninguém, dizer o que? Apenas olhava pela janela. As pessoas passavam indiferentes pela rua, nem notavam seu semblante cansado, seu olhar perdido nas banalidades lá de fora. Era só um rosto velho na velha janela da velha casinha, nada mais. Um belo dia, foi comprar frutas em uma feira ali perto, não muitas, pois não podia carregar peso. Quando voltou para casa, parou seus passos arrastados bem em frente à sua moradia. Olhou para a janela vazia, aberta, e imaginou-se ali, sentada. Visualizou seu rosto triste naquela janela e concluiu que aquilo mais parecia um quadro, sim, um quadro melancólico que tinha como adequada moldura o velho marco e a descascada guarnição da janela; a escuridão dentro da casa - quase não acendia as luzes, pois recolhia-se cedo - emprestava as tintas lúgubres com que era pintado o fundo daquela tela na parede caiada. Sorriu. Entrou, humilde, em sua residência, largou as frutas na cozinha e foi ao quarto. Revirou em uma gaveta até achar um velho batom, em seguida postou-se em frente ao espelho e com sua mão trêmula, pintou, ou melhor, borrou os lábios de vermelho. Retirou os grampos e penteou os cabelos brancos e finos. Terminada a tarefa, dirigiu-se à sua cadeira na janela, sentou-se e abriu um imenso sorriso de acrílico. Agora, a velha inclinava a cabeça numa reverência respeitosa aos transeuntes da rua e presenteava-os com seu melhor sorriso. Era correspondida. Ficou feliz... se era para protagonizar uma obra de arte, mesmo que num quadro que tenha como moldura o marco e a acabada guarnição de sua janela, que estivesse alegre. Quem sabe assim contrariasse, zombeteira, o artista... este artista que com a destreza dos mestres, tão bem soube usar o martelo e o cinzel para esculpir-lhes os sulcos no rosto; este artista que tão bem soube misturar tintas até encontrar o tom de cinza com que lhe pintou o olhar e a alma. Quem sabe seu sorriso representasse um pequeno deboche, uma pilhéria, uma provocação, qualquer coisa... a este impertinente, hábil e irreversível artista chamado Tempo...

quarta-feira, 24 de março de 2010

O PINGO

Era na hora das refeições que a tensão se abatia sobre aquela familia. Na comprida mesa, todos se reuniam para comer sob o olhar severo do patriarca. Um homem duro, que não gostava de conversas durante as refeições, e era obedecido. Todos comiam obedientes, cabeça baixa, e só mesmo o ruído dos talheres nos pratos eram percebidos. Na cabeceira da mesa o pai, ao lado a mãe, do outro lado a filha mais velha e depois as duas meninas menores. Desde pequenas eram alertadas para os momentos 'cruciais' do dia. - Na mesa, educação e silêncio - que nunca esquecessem disto. Havia ainda um problema maior: a toalha de mesa. Não era raro ver o patriarca com o olhar congelado na direção de algum garfo, durante o temeroso trajeto do prato para a boca. Não admitia nenhuma mácula na toalha de mesa, um farelo de pão, nada. Então chegou um dia em que a preocupação atingiu seu ponto máximo: o novo namorado da filha mais velha iria, finalmente, almoçar com a familia naquela mesa tão cheia de recomendações. A coisa piorava por conta de ser Domingo, dia de usar a toalha de linho branca com belos brocados dourados. A moça fez todas as recomendações ao rapaz, pois todo o cuidado era pouco. Chegou a hora, todos sentaram sob o olhar autoritário do pai, a tensão era imensa, e o silêncio de sempre permeava os gestos calculados com que os guardanapos eram colocados nos colos. Tão logo começaram a comer, silentes, o rapaz percebeu no olhar do homem na cabeceira um aviso mudo, que tivesse muito cuidado então. Procurou no sorriso de sua amada à sua frente o alívio para aquela situação constrangedora, mas, aos poucos viu o semblante alegre da namorada ir minguando; ao olhar para as outras pessoas na mesa percebeu que sua mão era alvo de olhares apavorados; caprichosamente, um pingo de molho começava a formar-se embaixo de seu garfo, refém do abraço inexorável da Lei da Gravidade. Ficou imóvel, se tentasse deslocar o talher até o solo seguro do prato, o pingo poderia cair, qualquer gesto poderia fazer o pingo cair, sua respiração poderia fazer o pingo cair... O patriarca tinha os olhos fixos naquela catástrofe iminente, e os demais deslocavam seus olhos com vagar do pai para o pingo... do pingo para o pai... mas o desastre era irreversível, já não havia volta... E o pingo pingou. Tal qual um tiro assassino que deixasse sua marca de sangue em uma camisa muito branca. Agora todos olhavam para o pingo na toalha. Um pequeno ponto vermelho redondo e ruidoso, como que a desafiar a autoridade imaculada daquela brancura inelutável e infinita. Lentamente, todos foram virando seus rostos a um só tempo, como se aquilo fosse ensaiado, em direção ao pai. O homem estava vermelho e sua veia jugular palpitava uma tempestade com conseqüências incalculáveis. O rapaz tremia. O silêncio que revestia aqueles segundos dava um ar de eternidade ao tempo. Tudo agora estava suspenso, inclusive as respirações. Foi quando o patriarca tirou os olhos do pingo e os perdeu no nada. Ficou parado, estático. Sua boca foi abrindo lentamente e para surpresa de todos um sorriso se achegou manso ao semblante sempre fechado daquele homem, em seguida riu, e logo depois explodiu em uma imensa gargalhada! Gargalhava, gargalhava, e todos, aliviados começaram a rir também, no começo risos meio tímidos, mas depois gargalhavam a valer também. O homem só dava rápidas paradas em seu riso frenético para olhar e apontar para o pingo ali na toalha, e logo seguia com as ruidosas gargalhadas. Dizem as boas línguas que nesse dia dava para escutar as risadas lá do outro lado da rua. Dizem mais, dizem também que depois daquele pingo aquela familia nunca mais foi a mesma.

segunda-feira, 15 de março de 2010

O POTE

- Nunca mexa neste pote - dizia o pai com o pote na mão - mas se um dia o fizer, arque com as conseqüências! - escutou várias vezes esta frase quando era garoto. O pai fazia a recomendação com tal seriedade, que com o passar do tempo, nem perto do pote ele passava. Não foram poucas as vezes que olhava para aquele pote com raiva; por que não podia pegá-lo? Que implicância era essa de seu pai em relação a ele e aquele objeto? Um pote comum, de louça branca, que não tinha nada de mais? Restou disso tudo uma espécie de trauma, bem como, uma curiosidade infinita: o que lhe aconteceria, afinal, se o desobedecesse e pegasse em suas mãos a misteriosa peça? Lembrava da voz do progenitor basicamente por causa da recomendação do pote; não era de falar muito,o velho, era, até mesmo, um homem solitário. Lembrava do pai sentado na sala, só, fumando seu cachimbo. Ficava horas absorto observando a fumaça azulada; no que estaria pensando? O tempo passou, casou, teve filhos, o velho pai se foi... e ele nunca tocou naquele pote. O pote estava agora em sua casa, jazendo no fundo de um armário, embrulhado em papel. Sua esposa embrulhou a peça rapidamente, pois ele não queria saber daquilo, afinal, não era para ficar longe? Sempre fora obediente ao velho pai, e embora não soubesse o 'por que', respeitava seu pedido, ou ordem, nem sabia direito. A verdade é que aquilo sempre lhe incomodou, não era possível depois desse tempo todo ainda remoer esse assunto, mas ele remoía. Um dia, no trabalho, pensava no pote quando algo lhe ocorreu: seu pai dizia - Nunca mexa nesse pote, mas se um dia o fizer, arque com as conseqüências. - Ora, já não era um menino! Seu pai há muito tempo já não estava neste mundo! Sim, arcaria com as conseqüências! Estava decidido, tão logo chegasse em casa, pegaria o pote e, mais que isto, o colocaria no centro da mesa de jantar como uma espécie de troféu pela sua ousadia. Quando chegou em casa estava nervoso, cumprimentou rapidamente a mulher, os filhos e foi ao seu quarto, trancando-se à chave para ficar mais à vontade com seus fantasmas. Abriu o armário e esticou seu braço até pegar o pote embrulhado atrás de algumas blusas de lã dobradas. Tremia. Sentou-se na cama com o maior mistério de sua infância nas mãos, procurou não pensar no velho, abriu o embrulho e quando retirou a tampa do pote viu um papelzinho dobrado, amarelado pelo tempo... Seus olhos ficaram paralisados por um momento. Então, com calma ele abriu o bilhete, ali se lia: VOCÊ ESTÁ LIVRE! Reconheceu a caligrafia do pai, e naquele momento sentiu que livrava-se do imenso peso que sempre o acompanhara em sua existência.Faziam, ambos, pai e filho, uma reconciliação muda, através justamente da transgressão, mesmo tardia, da ordem dada. Aquelas três palavras naquele sucinto bilhete eram a chave para todo o seu passado, e... para seu futuro. - Então... - pensou ele - meu pai era um brincalhão? dado a enigmas? Um homem misterioso e com um lado lúdico que nunca conheci? Ou, ainda, quem sabe, um sábio? Droga, por que não abri este pote antes! - se emocionou. Sim, arcaria com as conseqüências de ser livre,segundo aquela zelosa recomendação, e com a responsabilidade que a verdadeira liberdade traz. A partir desta descoberta sua vida mudou. Estava mais alegre, tranqüilo... e desenvolveu o hábito de ao deitar, pensar em sua infância, no relacionamento distante com o pai; lembrar de conversas, procurar outros indícios, metáforas, qualquer coisa... enfim, garimpar outras pequenas pistas que o velho tenha deixado, tal qual pequenas migalhas de pão em uma floresta, para que o filho, talvez um dia, encontrasse o caminho até seu duro, solitário, misterioso, mas nunca fechado coração...

domingo, 14 de março de 2010

O MORIBUNDO

Seu amigo estava morrendo. Entrou no quarto do hospital e o encontrou ali,deitado, abatido, magro, nas últimas. Achou melhor não falar nada. Deixou as flores que levara em uma mesa de canto, só estavam os dois. Olhou novamente para aquele homem de olhar longínquo, tão débil, e não pode deixar de lembrar de todos aqueles anos passados. Foram muito amigos, embora ultimamente a vida os tenha colocado em caminhos muito diferentes. O moribundo ali, atirado para morrer, que ironia, sempre fora um homem de espírito positivo, um otimista inveterado, um sonhador até. Já ele não. Era tido como 'pessimista', havia até quem dissesse que era 'agourento'. - É o que dá... ter os pés no chão, não fugir da fria e inexorável realidade, de que valeu todo seu espírito otimista? - pensou. Aquela visita era quase uma vitória. - Nosso time joga na quinta. - disse, quebrando o gelo, mas logo se deu conta da gafe: era domingo, talvez o moribundo não estivesse neste mundo na quinta. O homem na cama não falava nada, apenas acompanhava, através de seus olhos afundados em olheiras, os movimentos do amigo pelo quarto. Não encontrando nada para dizer, o visitante parou em frente à janela e perdeu o olhar no movimento ruidoso da vida lá fora. Era um homem de hábitos.Imaginava que teria de quebrar sua preciosa rotina para ir a um velório, detestava velórios. Bem, se o moribundo morresse durante o dia, estaria trabalhando, era uma bela desculpa. Se fosse à noite, aí nem pensar, via sua novela e depois recolhia-se ao leito; e de madrugada em hipótese alguma saía de casa. Estava decidido, inventaria uma desculpa, mas não arredaria pé de sua tranqüila rotina. Resolveu que já não tinha mais nada a fazer ali; caminhou silencioso até a cama do amigo e inclinou-se lentamente, até seus olhos frios encontrarem o olhar embaçado e patético do doente, aproximou bem o rosto, para que o 'otimista' constatasse o brilho duro daquele olhar. Por alguns segundos mantiveram olhos nos olhos e uma lágrima desceu solitária pela face do moribundo, enquanto a ponta de um sorriso se fez notar nos lábios do visitante. Sentiu uma agradável sensação de vitória, já podia ir embora para o abraço morno de sua rotina. Saiu do quarto, desceu no elevador, atravessou o saguão, sempre pensando se o que fizera era o correto. Sim, sim, era o certo, não podia fraquejar agora. Já estava na rua, distraido por estes pensamentos, quando ao atravessá-la foi colhido por um automóvel. Morreu na hora. No dia seguinte, em seu velório, o caixão jazia solitário na capela mortuária quando o moribundo apareceu em uma cadeira de rodas, conduzido por dois enfermeiros. Um deles, só para carregar o soro. Estacionou, consternado, em frente ao caixão. Fez um sinal com sua mão trêmula e o outro enfermeiro inclinou-se, quase encostando sua orelha na boca do paciente, este então sussurrou com sua voz nas últimas: - Ele esteve lá no hospital ontem. Que tragédia. Sabe, eu pressenti algo ruim. Sim, quando nos despedimos, sei lá... meu coração apertou, me emocionei. Naquele momento eu tive certeza que aquela era a última vez... - traido pela emoção, começou a chorar. Encontrou forças ainda para dizer suas últimas palavras: - Sentirei saudades...

sexta-feira, 12 de março de 2010

O ESPELHO

O espelho era a primeira coisa que avistava com interesse, tão logo levantava pela manhã. Ao sair do quarto, ainda zonzo pelo sono, ia direto ao banheiro, lá olhava através do espelho para sua cara desarrumada. Foi numa manhã dessas, quando fazia a barba,que foi acometido por um estranho raciocínio: aquele pedaço quadrado de vidro à sua frente era onde havia pousado seus olhos ainda confusos, todas as manhãs, nos últimos quarenta anos. Quarenta anos!Desde que começou a acordar cedo para ir trabalhar. Ficou extático olhando-se nos olhos com o aparelho de barba suspenso ao lado do rosto lambuzado pela espuma. Quarenta anos! Aquele espelho ali à sua frente, tão próximo e íntimo, viu tudo! Seu rosto envelheceu aos poucos, mas aquele espelho, amigo fiel, não deixou que percebesse. Mas agora percebia. Afoito, Removeu o creme com a toalha, enxaguou o rosto e olhou-se com atenção. Envelhecera. Mas, por que só agora se dava conta? Um sorriso, então, se achegou manso emprestando sua luz serena àquele rosto já sulcado e começando a mostrar sinais de cansaço. Reparou nas pequenas rugas ao redor dos olhos, reparou também em alguns sinais que não tinha, presente indigesto com o qual o tempo lhe bridara. Por que? - pensou - só agora percebia tudo isto? Envelheceu e não viu. Sorriu novamente, um sorriso meio amargo é verdade, mas um singelo reconhecimento a este, que agora reconhecia, sempre fora seu melhor amigo. Não, não podia culpar o espelho pelo tempo que passou e deixou suas marcas ao redor de seu olhos. Na verdade, ingrato era ele, que ao passar do tempo nunca olhou para seu amigo fiel. Egoísta, sempre viu a si mesmo através do espelho, nunca vira o espelho, só a sua imagem refletida nele. Agora reparava com calma, quase carinhosamente naquele vidro tão próximo, tão comum... tão corriqueiro... tão banal... que nunca foi merecedor de sua atenção. Ficou envergonhado. Sim, envelheceu, mas seu amigo, o espelho, na sua frieza neutra e caprichosa, nunca deixou que percebesse...

quinta-feira, 11 de março de 2010

A PORTA

Odiava portas. Tudo que 'fecha e têm dois lados' lhe preocupava, mais que isto, lhe tirava o sono. O que havia por detrás da porta? Quem poderia saber! Dormia de porta aberta, pois se a fechasse, imaginava o que estaria se passando do outro lado, e vice-versa; também não podia ver quartos fechados sem que sua imaginação se pusesse a trabalhar freneticamente. Afinal, o que há do outro lado da porta? Até que ponto, o que não via podia assustá-lo tanto?Quando deitava demorava a dormir, pois mesmo com a porta do quarto aberta, como sempre, perdia o sono por conta do exíguo espaço entre a porta e a parede, sim, mesmo aquela pequena sombra que restava deveria portar seus mistérios. Não gostava de mistério.Gostava das coisas às claras, bem iluminadas pelo Sol; coisas que podia ver. - por que inventaram as portas? o que tanto precisam esconder? Que intimidades bizarras precisam ser 'varridas' para trás de uma porta? - certa vez experimentou um alívio filosófico: de tanto pensar no assunto descobriu que pelo menos sabia o que se encontrava atrás de um lado da porta: ele mesmo!já era um começo. Mas quando concluiu que metade do mistério estava resolvido, algo lhe ocorreu; havia sobrado 50% do problema!As coisas pioraram. Já não conseguia dormir. Numa de suas vigílias teve um estalo!O Problema não é o 'outro lado' e sim, 'a porta'! Levantou, estourou champanha, dançou de felicidade! Finalmente a partir de agora haveria de dormir! Não perdeu tempo: retirou as portas de sua casa e teve prazer maior quando o fez em seu quarto. Embriagado pela alegria, naquela noite sem portas, dormiu como um anjo... ou talvez, como um demônio...

quarta-feira, 10 de março de 2010

BBB - Eleições 2010!

Noventa e dois milhões de ligações! Sim, você leu bem. 92 milhões. Este foi o - incrível - número de ligações telefônicas que um dos últimos 'paredões' do chamado Big Brother Brasil amealhou junto ao atento povo brasileiro. Puxa! Fiquei impressionado! Enfim, algo tem o condão de 'mexer' com a população, tirá-la da sua proverBIAL apatia no tocante às coisas 'deste País'. Ora... ora...as eleições estão aí! Fica aqui, Presidente, a minha sugestão. Sim, tudo é entretenimento hoje em dia! Por que sacrificar nosso Povo com coisas sérias e chatas como eleições? Além, claro, da tarefa cansativa e incômoda de ter que se locomover até aquelas filas odiosas perante as urnas - eletrônicas, vá lá... - atrapalhando o dia? Estamos na era digital, Presidente! Veja o BBB. Votos por celular, etc... não é uma boa? 92 milhões, Presidente! Está provado que funciona! Bem, minha sugestão: o BBB - Eleições 2010! por que não? O único incômodo seria ceder a Granja do Torto. Sim, a Granja do Torto, sabe como é... para já irem se acostumando, os candidatos, afinal, um deles será o escolhido. Bom, a partir daí é só botar os candidatos trancados na 'Granja' por dois meses imediatamente anteriores ao dia do Pleito. Não é uma boa? Todos os postulantes na 'casa' sendo monitorados pelo Povo, 24 horas por dia; existe melhor maneira de conhecê-los profundamente? Sim, conhecê-los nos menores detalhes: suas manias, pequenos vícios, birras... suas intimidades mais incômodas, etc...Saberemos também como respondem às situações mais extremas, sabe como é... muita pressão, convivência com adversários e, enfim, tantas outras mazelas que descobriremos ávidos. Minha sugestão: cada semana, um no paredão! É certo que os chamados 'nanicos' deverão ser os primeiros a serem 'defenestrados' da casa, mas paciência... é a Democracia. Imagino - futurologia, Presidente, não leve muito a sério - que deverão 'sobrar' o Serra, a Dilma e o Ciro, é o que penso. Ai ai ai, as últimas três semanas seriam eletrizantes! Se pode até pensar em conceder os tais 'pontos eletrônicos' para que os marqueteiros possam assessorar, ao pé do ouvido, seus clientes. O povo não vê o ponto eletrônico, Presidente, pode ter certeza que dá certo. O problema nessas últimas semanas do programa, perdão, da campanha, será administrar possíveis animosidades entre a Dilma e o Ciro - temperamentos fortes, entende? -. Penso eu, que essas rusgas serão contemporizadas pelo Serra, o problema é que ele vai separar as brigas fazendo discursos sobre tolerância, mas o fará olhando para as câmeras, aí não pode! Por isso o ponto eletrônico, compreende, Presidente? Assessoria 'real time', não é Fantástico, perdão, fantástico? O final da história é aquele: quem sobrar leva! Não deixo por menos: 200 milhões de ligações - no último Paredão - ah, ia me esquecendo, e isto é importante: a emissora até pode ser a Globo, afinal... né? Mas o apresentador não pode ser o Bial. Não, não, tem que ser o presidente do TSE, fica uma coisa mais séria, o senhor não acha? Bem, está aí a minha sugestão. Eleições com entretenimento.Sem falar na economia que poderá ser feita, pois todos sabem o quanto é dispendiosa uma eleição 'normal'. Dá tempo, Presidente; aí, quem sabe, finalmente, possamos inverter a lógica e tirar o 'controle' das mãos dos políticos, bem como, nossas cabeças do 'paredão'.

Pra frente Brasil! (não do Paredão!)

Roberto Axe

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

A PANTERA DO PORÃO




A fera se deliciava. Aquela carne fresca, todo aquele sangue. A escuridão segura daquele porão... e o cheiro cúmplice da morte. Apenas a pequena vela em um canto do recinto emprestava seu fogo dançante à cena macabra. A mulher, sentada nua no chão, em um canto, imersa naquela sombra tão confortável e mansa, observava a pantera em seu regozijo. Uma observadora serena em sua excitação calma, embalada por uma lascívia etérea e crescente. Observava atenta seu animal destrinchar com volúpia e cuidado aquele corpo morto de homem que agora mais parecia o de uma boneca de pano na submissão àquela força ferina.  Casualmente a cabeça da presa, que pendia inerte apenas ligada por tendões e músculos teimosos, mantinha os olhos abertos em direção à mulher, como que pedindo uma explicação para o porquê daquela morte tão prematura e violenta de que agora era vítima. A pantera lambia ossos expostos num cuidado zeloso pelo alimento; de tanto em tanto, parava e olhava diretamente nos olhos da dona, numa cumplicidade só possível nas sombras. – Come, meu amor, come... – disse a moça, levando calmamente a mão à sua boceta totalmente molhada; sentiu no esperma do morto, que caia lento da vagina inchada, a reminiscência viva do coitado. O que dele ainda era vivo estava nela. Uma sensação de poder e gozo lhe assaltou de supetão, ela conhecia muito bem aquele sentimento delicioso que agora se apossava de sua pele. Seu rosto foi tomado por um calor de quarenta graus, e ela começou a emitir gemidos; seu corpo começou a tremer e a esquentar numa sensação febril e incontrolável. Puro prazer. Manuseava o clitóris com sofreguidão e a pantera em consonância emitia pequenos grunhidos oriundos do deleite daquela carne morta e suculenta. A luz do tímido fogo da vela clareava com seu amarelo indeciso, o chão enegrecido em torno do banquete da besta. Era um sangue denso e aquele cheiro, ali, naquele ambiente tão pequeno, a qualquer um causaria fortes náuseas, mas não a ela. Ela não. Ela não era mais qualquer um. E uma risada explodiu ruidosa; seu corpo tremeu inteiro assolado por um prazer incontido e puramente carnal... um prazer de fera!  Retirou a mão de sua boceta, que se transformara em uma suculenta flor desabrochada pelo calor do instinto, e botou na boca. Lambeu seus dedos com todo aquele líquido pastoso, produto de sua excitação desenfreada misturado ao sêmen do morto, e não agüentando mais, deu início a um gozo alucinado, e enquanto lambuzava com os dedos sua boca e seios, a outra mão trabalhava, frenética, em seu clitóris, este parecia que iria explodir um prazer selvagem a qualquer momento, levando através de um rastilho de fogo, o apoteótico orgasmo ao fundo de seu útero. A pantera pressentiu o êxtase da mulher e na cumplicidade daquela escuridão, rugiu com força, mais de uma vez, fazendo com que seu hálito quente de sangue chegasse àquele corpo vivo que se contorcia, febril, em seu canto; então os gritos e os rugidos se misturaram num amalgama de êxtase cego.  
   


 Trecho do livro A Pantera do Porão.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

A GOSMA

A Gosma gruda tão logo acordamos. Ninguém vê a Gosma, não a ouve, bem, pelo menos não com sua própria voz. A Gosma fala pela voz dos outros, nos vê através dos olhos alheios, nos atinge morna e mansa através de seus agentes, ingênuos agentes que ela usa e abusa, tão inocentes que são; carregam a Gosma mas não percebem. A Gosma está em tudo. Está na voz do apresentador de TV,na notícia do jornal, no olhar da vizinha, no riso do cara da banca, na bondade da professora, na mão esticada do novo amigo,na saudação do velho que passa, no pedido da empregada, na mensagem do Presidente, a Gosma é nojenta, gruda. Não há banho que a remova. Ela vem pelo rádio, TV, revistas, internet,e... livros, mas... aí há um problema para a Gosma; não são todos os livros que se dispõem a serem melados pelo seu gosto sem gosto, seu cheiro sem aroma, até porque a Gosma fala mas não diz, ouve mas não escuta! A Gosma é amorfa e inodora. Bem, os livros... aí a salvação! É da Arte que se serviram e se servem os que se negaram ao conforto morno da Gosma.. ufa!Sim,uma saída! A Gosma odeia tudo que não fala da Gosma.A Gosma não gosta de nada que anda, ela é estagnada, mansa, pegajosa. Seus agentes nos cercam com seus olhares piedosos e nos pedem, silentes, que nos lambuzemos com a Gosma, mas agora já é tarde, já passamos muito tempo atendendo pedidos gosmentos. É a nossa vez, corremos então em direção ao mar, nada ficará em nosso corpo, é um banho purificador! Sabemos que a Gosma detesta o mar!Detesta a Noite!Odeia o que não vê! Mergulhamos finalmente alegres na imensidão, um mergulho na liberdade da Arte, um mergulho satânico!