terça-feira, 18 de junho de 2013

A FESTA DE MADAME CLITÓRIS


Madame Clitóris deu uma festa.

E que festa!

A coisa se deu na eminente residência de Mme Clitóris. Muitos convidados importantes. A nata cultural e artística da cidade. Para vocês terem uma idéia, até uma pequena orquestra foi improvisada no grande salão da mansão. A orquestra contava com Dr. Ataúde tocando episódio, Sr. Potreiro tocando baluarte, Dona Colméia tocando faxina, Dona Lisura tocando lágrima e Seu Alhures dedilhando a carreata.  Coisa linda de se ver e escutar. Foi uma pena Dona Virilha ter chegado atrasada, mas todos entendiam, afinal, fizera uma operação para retirada de um colostro no ombro esquerdo e aproveitara para remover um pirralho que há muito havia surgido em seu nariz. Tudo correu bem. Seu respeitável marido Sr. Gangrena também se submetera a uma intervenção, nada de mais, foi só para corrigir um desvio de pinguela nas costas. Outro convidado que passou por um susto foi o Senhor Curral, que descobriu um alcalóide no braço, mas graças a um tratamento à base de apnéia e injeções de musselina, conseguiu curar-se. Bem, mas falemos um pouco do que foi servido aos convivas. Madame Clitóris caprichou no jantar, vejamos: de entrada uma sopa de baganas belgas com chocalhos e afagos africanos. Como prato principal, uma bela compostela com grisalhos ao molho de candeeiro. Como sobremesa foram servidos faniquitos com larápios silvestres. Para beber, um caprino de boa safra. Uma delícia, todos concordaram. Depois do jantar os convidados reuniram-se no salão para uma boa conversa. Alguns lembraram que aquele casarão já fora assombrado por calúnias penadas e alguns juraram já tê-las visto... “Ao chegar aqui, juro que vi uma calúnia lá no jardim, juro, juro...” afirmou Dr. Cemitério, mas ninguém o levou muito a sério. Lá fora as crianças brincavam na corriola, fazendo grande balbúrdia. No salão os presentes conversavam animados quando Sr. Medonho sentiu-se mal e teve de ser amparado e acomodado em um confortável poltrão que ficava em um canto da sala. Recomposto, Sr. Medonho admitiu que sofria de um insulto no coração e de vez em quando tossia até botar as bazófias pra fora.  Nada que não pudesse controlar com pílulas de tamborim e algumas aplicações de melindrosa. Dr. Pancrácio, médico, ali presente, recomendou-lhe algumas pílulas de urinol, mas sempre em jejum. Depois do susto todos voltaram a conversar os mais variados assuntos. Dona Gengiva vangloriava-se de que seu filho iria formar-se ao final do ano em flatulência gerencial, e que sempre fora talhado para isso.  Dona Miséria estava aliviada, dizia, pois a filha havia finalmente curado uma verborréia que lhe surgira há alguns anos na língua. Sr Asneira comentava uma viagem que fez ao sul de Framboesa, afirmando não haver praias mais lindas, de águas límpidas, através das quais se pode ver os fetiches e os frouxos nadando tranqüilamente. Disse que aproveitou também sua estadia na Framboesa para conhecer as Ilhas Silábicas e suas ruínas históricas, pois lá viveram os carrancudos, povo guerreiro e de poucos amigos.

Todos bebericavam chilique.   


Dona Faringe, que adorava salada de ceroulas, ponderou que mesmo que a anfitriã não tenha servido a salada de seu gosto, pelo menos poderia disponibilizar um tantinho de molho de fuleiros, que ela sabia, Mme Clitóris havia importado da Crisálida. É claro que esses comentários eram feitos à boca miúda, pois ninguém ousava afrontar a dona da casa, que aliás, surpreendeu a todos ao servir, mais tarde, uma grande falácia doce com calda de asneiras. Foi uma grande comilança, Mme Clitóris gostava assim.  Foi só lá pelas altas da madrugada que os convidados, enfim, partiram, quase em bando... “Parece até um bando de compotas” comentou Mme Clitóris com uma criada, lembrando daqueles simpáticos animaizinhos que habitam o sul do Carnegão. Enfim a sós, Mme suspirou cansada, mas já imaginava o que serviria em alguma festinha vindoura “Talvez um amálgama com saborosos garranchos, quem sabe...” , foi para o quarto e desabou, exausta, em sua cama, nem removeu a traquinagem de seu rosto. Agora só queria dormir... dormir... dormir... e que sabe, sonhar com o que mais gostava... um imenso e intenso vergalhão... daqueles, lá das Ilhas Anarquias...                        

terça-feira, 30 de abril de 2013

Helena e a Janela

Nada intrigava mais suas amigas.

Sim, essa mania, estranha mania, ou até quem sabe, esse melancólico vício. Desde que seu marido a abandonara Helena não saía da janela. Parada, olhar perdido, poucas palavras, tristeza, melancolia...  Helena agora sempre prostrada, aquele olhar mortiço, indiferente. Certo, essa atitude quase mórbida as amigas podiam entender, afinal, fora abandonada feito um brinquedo velho por aquele cara ordinário que nunca prestou mesmo; o que encasquetava as mulheres era a mania de Helena ficar a olhar pela janela dos fundos e não, pelo menos, ficar junto à janela da frente vendo o movimento na rua, pelo menos...  Quem sabe – comentavam – ela faça isso como um sinal de protesto, como se deixasse claro de que não quer mais nada com o mundo exterior. Aquelas ruas pelas quais o desgraçado evadiu-se para sempre, ruas sujas, escrotas, más! Quem precisa delas? Bastava-lhe seu mundinho, sua casa, casa vazia, solidão, solidão...

As amigas tentavam levantar o Moral de Helena em vão. Reuniam-se, chegavam juntas para visitas, traziam bolos, chás, vinho, revistas, mas a mulher apenas esforçava-se para ser simpática, nada mais. Passados alguns minutos depois da chegada das amigas, Helena, quase num gesto mecânico, postava-se diante da janela dos fundos e ficava com o olhar perdido. Pobre Helena. Cada vez mais pálida, as olheiras engolindo lentamente seus olhos tristes, a mulher sempre de costas para a rua, na janela dos fundos. Pobre Helena.

As amigas combinaram que não iam desistir da sofredora, ora, ela era sempre tão alegre antes daquele canalha abandoná-la, aquele escroto que era dado à bebida e à jogatina e que disse certa vez: “um dia saio por essa porta e não volto mais! E você vai passar o resto de sua vida olhando por essa janela esperando eu voltar!” . Helena negava-se a isso, com certeza, era uma vitória pessoal não fazer o que danado previu do alto de sua soberba. As amigas sabiam das coisas. A pobre mulher cansara de esperar pelo marido durante as madrugadas frias, ali, na janela e já até acostumara-se quando enfim lá pelas tantas ele despontava trôpego pela rua e, cara de pau que era, vinha chamando seu nome “Helena! Helena!” não raras vezes abaixo de chuva.

Um dia as amigas forçaram a barra, não sairiam de sua casa se ela não lhes revelasse o segredo da janela... “por que a dos fundos e não a da frente?”

Helena contou às amigas, entre soluços, que foi depois de uma  dessas saídas noturnas que o bandido não voltou mais e na ocasião, como sempre, ficara de plantão junto à janela que dá para a rua, esperando o filho da puta voltar, bêbado, sempre gritando seu nome, sempre descomposto. Mas nunca mais voltou. Jurara desde então que nunca mais ficaria junto à janela que dava para a rua esperando seu homem, não, jurara, não, nunca mais.

As amigas deram-se por satisfeitas e a abraçaram, logo depois pediram desculpas, mas tinham de partir, pois um grande temporal formava-se e já estava escurecendo. “Tudo bem” disse a anfitriã. As mulheres partiram.

Temporal.

Solidão.

Chuva que cai torrencial...

Janela dos fundos.

Casa escura.

Olhos cravados no quintal, como sempre... pupilas dilatadas, chuva crepitando ruidosa no solo arenoso. Relâmpagos clareiam o semblante fechado da mulher. Semblante de preocupação... preocupação com essa enxurrada desgraçada que da última vez  lambeu o pátio com sua volúpia louca de tormenta e quase revela  a cova rasa, ali, bem ali, à frente da qual, quieta, ela passa parte dos dias e das noites, mas as amigas não sabem

terça-feira, 19 de março de 2013

O CASO CRISTINA


Pois é meus caros amigos...

Fosse eu alguém cujo sono embalasse com sua doçura balsâmica tão logo colocasse a cabeça no travesseiro, talvez esta situação não me incomodasse tanto. Mas não, minha indefectível insônia há muito vem protagonizada por uma mulher chamada Cristina. Não é que a Cristina não me saia da cabeça, não, não é isso, o que não me sai da cabeça é a dúvida se ela, minha cabeça, começou a me pregar peças ou não. Estarei enlouquecendo? Talvez, mas garanto a todos que este é um caso em que: ou estou louco, ou todo mundo está! Parece um pouco confuso? Bem, para entenderem a coisa, eis a história.

Há muitos, mas muitos anos mesmo, que nossa turma de amigos reúne-se em jantares ocasionais, principalmente em aniversários. Como não podia deixar de ser, com o passar do tempo as pessoas casam, constituem família, e suas presenças nesses eventos vão tornando-se mais raras, pois o envolvimento com filhos e outras atribuições do cotidiano contribuem diretamente para essa diáspora. Nada mais natural. Natural também é o fato de que quando depois de um bom tempo alguns ‘sumidos’ retornem a esse efêmero convívio, sejam saudados com carinho e euforia...Pois bem... é aí que o mistério começa. 

Quando em uma dessas ocasiões, Cristina chegou com o marido. Foi muito festejada, pois realmente havia anos que ela não dava o ar da graça em nossos jantares. Cristina casou com Celso, sujeito de poucas palavras e de uma simpatia forçada – para não dizer duvidosa – como alguém que deixasse claro que se não fosse pela esposa, ele não estaria ali. Celso nunca foi da turma, Cristina o conhecera alhures e desaparecera por bom tempo para criar filhos e essas coisas... enfim, agora depois de muitos anos, voltava. De minha parte, em outras ocasiões, sempre a recebi com gentileza e alegria, até porque no passado, quando ainda era solteira, tivemos um rápido caso. Era por conta desse caso que nossos olhares assumiam um ar de cumplicidade tão logo se encontravam, era involuntário, coisa de um carinho mútuo – talvez permeado por pequenos ódios invisíveis, pequenas frustrações, nunca se sabe – e de uma camaradagem espontânea. Nesses jantares perguntávamo-nos sobre qualquer bobagem, quase que aguardando a resposta só para rirmos e darmos vazão ao gozo cúmplice e secreto de nosso encontro. Quanto a Celso, a tudo acompanhava meio alheio e carrancudo. Até aí tudo bem, mas veio o jantar em questão. Cristina e Celso chegaram, houve muitos cumprimentos, risadas, abraços, salamaleques, e um cara chocado... eu.

Aquela mulher com o Celso não era a Cristina!

Meu espanto foi tanto que tive de ir ao banheiro, não sem antes conferir a qualidade da vodka, para lavar o rosto. Não era a Cristina! Mas então... como assim, será que só eu vejo o que ninguém percebe? Quando de minha vez de cumprimentá-la olhei-a bem nos olhos e não encontrei nada, era algo morto, não encontrei o veneno suave que sempre caracterizou seu olhar maroto. Mas realmente isso é o de menos, pois tudo era tão claro, tão berrante! Era outra mulher, outro rosto, outro semblante, outro tudo! Caramba! E todos a saudá-la, inocentemente, como se não percebessem tratar-se de uma impostora! Chamei de canto então um amigo para tirar explicações:

-         Vem cá, irmão, isso é alguma brincadeira? Alguma pegadinha?

-         Como assim? – perguntou surpreso.

-         Ora, não me vem com essa, você não está vendo? Essa mulher não é a Cristina!

-         Cara, cê tá doido?

-         Dá uma olhada daqui, olha lá! porra meu, não tem nada a ver! Olha só aquele rosto... nunca vi na vida! Não é ela!

-         Cara, calma – disse meu amigo com um sorrisinho que me incomodou – tá um pouco diferente, também, quantos anos né? Vai ver fez plástica... sabe como é... puxa aqui ali... mas que é ela é ela! Você tá louco, isso sim!

Fiquei tão indignado que fui embora, inclusive aproveitando a despedida para certificar-me, mais do que nunca, de que aquela mulher não era a Cristina. No caminho de casa fiquei imaginando o que poderia ter sido feito da minha doce amiga. No mínimo aquele marido horroroso a havia matado, se livrado do corpo e posto em prática seus dons hipnóticos... só pode ser, mas comigo não funcionou.  Até hoje não engulo essa. Comentei isso com outros parceiros e todos me tiraram para pirado!

Ah, sim...

Houve outros encontros depois disso, e sempre a mesma coisa; de minha parte desisti. Convivo nessas ocasiões com a impostora, mas é como se estivesse com o fantasma de Cristina, ou nem isso, para mim aquela mulher não é nada! Quanto a Celso, olho-o bem no fundo dos olhos para que fique ciente de que sei de tudo, que sou o único que sabe de tudo, que sou o único que não se deixou levar por sua pantomima sinistra e que um dia, quem sabe, irei desmascará-lo!

E a todas essas, a minha insônia...

E a dúvida

Cruel

Se não estou, realmente, enlouquecendo...