Pois é meus caros amigos...
Fosse eu alguém cujo sono embalasse com sua doçura balsâmica tão logo colocasse a cabeça no travesseiro,
talvez esta situação não me incomodasse tanto. Mas não, minha indefectível insônia
há muito vem protagonizada por uma mulher chamada Cristina. Não é que a
Cristina não me saia da cabeça, não, não é isso, o que não me sai da cabeça é a
dúvida se ela, minha cabeça, começou a me pregar peças ou não. Estarei
enlouquecendo? Talvez, mas garanto a todos que este é um caso em que: ou estou
louco, ou todo mundo está! Parece um pouco confuso? Bem, para entenderem a
coisa, eis a história.
Há muitos, mas muitos anos
mesmo, que nossa turma de amigos reúne-se em jantares ocasionais, principalmente
em aniversários. Como não podia deixar de ser, com o passar do tempo as pessoas
casam, constituem família, e suas presenças nesses eventos vão tornando-se mais
raras, pois o envolvimento com filhos e outras atribuições do cotidiano
contribuem diretamente para essa diáspora. Nada mais natural. Natural também é
o fato de que quando depois de um bom tempo alguns ‘sumidos’ retornem a esse
efêmero convívio, sejam saudados com carinho e euforia...Pois bem... é aí que o
mistério começa.
Quando em uma dessas ocasiões,
Cristina chegou com o marido. Foi muito festejada, pois realmente havia anos
que ela não dava o ar da graça em nossos jantares. Cristina casou com Celso,
sujeito de poucas palavras e de uma simpatia forçada – para não dizer duvidosa
– como alguém que deixasse claro que se não fosse pela esposa, ele não estaria
ali. Celso nunca foi da turma, Cristina o conhecera alhures e desaparecera por
bom tempo para criar filhos e essas coisas... enfim, agora depois de muitos
anos, voltava. De minha parte, em outras ocasiões, sempre a recebi com
gentileza e alegria, até porque no passado, quando ainda era solteira, tivemos
um rápido caso. Era por conta desse caso que nossos olhares assumiam um ar de
cumplicidade tão logo se encontravam, era involuntário, coisa de um carinho
mútuo – talvez permeado por pequenos ódios invisíveis, pequenas frustrações,
nunca se sabe – e de uma camaradagem espontânea. Nesses jantares
perguntávamo-nos sobre qualquer bobagem, quase que aguardando a resposta só
para rirmos e darmos vazão ao gozo cúmplice e secreto de nosso encontro. Quanto
a Celso, a tudo acompanhava meio alheio e carrancudo. Até aí tudo bem, mas veio
o jantar em questão. Cristina e Celso chegaram, houve muitos cumprimentos,
risadas, abraços, salamaleques, e um cara chocado... eu.
Aquela mulher com o Celso
não era a Cristina!
Meu espanto foi tanto que tive
de ir ao banheiro, não sem antes conferir a qualidade da vodka, para lavar o
rosto. Não era a Cristina! Mas então... como assim, será que só eu vejo o que
ninguém percebe? Quando de minha vez de cumprimentá-la olhei-a bem nos olhos e
não encontrei nada, era algo morto, não encontrei o veneno suave que sempre
caracterizou seu olhar maroto. Mas realmente isso é o de menos, pois tudo era
tão claro, tão berrante! Era outra mulher, outro rosto, outro semblante, outro
tudo! Caramba! E todos a saudá-la, inocentemente, como se não percebessem
tratar-se de uma impostora! Chamei de canto então um amigo para tirar
explicações:
-
Vem cá, irmão, isso é alguma brincadeira? Alguma pegadinha?
-
Como assim? – perguntou surpreso.
-
Ora, não me vem com essa, você não está vendo? Essa mulher não
é a Cristina!
-
Cara, cê tá doido?
-
Dá uma olhada daqui, olha lá! porra meu, não tem nada a ver!
Olha só aquele rosto... nunca vi na vida! Não é ela!
-
Cara, calma – disse meu amigo com um sorrisinho que me
incomodou – tá um pouco diferente, também, quantos anos né? Vai ver fez
plástica... sabe como é... puxa aqui ali... mas que é ela é ela! Você tá louco,
isso sim!
Fiquei tão indignado que fui
embora, inclusive aproveitando a despedida para certificar-me, mais do que
nunca, de que aquela mulher não era a Cristina. No caminho de casa fiquei
imaginando o que poderia ter sido feito da minha doce amiga. No mínimo aquele
marido horroroso a havia matado, se livrado do corpo e posto em prática seus
dons hipnóticos... só pode ser, mas comigo não funcionou. Até hoje não engulo essa. Comentei isso com
outros parceiros e todos me tiraram para pirado!
Ah, sim...
Houve outros encontros depois
disso, e sempre a mesma coisa; de minha parte desisti. Convivo nessas ocasiões
com a impostora, mas é como se estivesse com o fantasma de Cristina, ou nem
isso, para mim aquela mulher não é nada! Quanto a Celso, olho-o bem no fundo
dos olhos para que fique ciente de que sei de tudo, que sou o único que sabe de
tudo, que sou o único que não se deixou levar por sua pantomima sinistra e que
um dia, quem sabe, irei desmascará-lo!
E a todas essas, a minha
insônia...
E a dúvida
Cruel
Se não estou, realmente,
enlouquecendo...