domingo, 14 de março de 2010

O MORIBUNDO

Seu amigo estava morrendo. Entrou no quarto do hospital e o encontrou ali,deitado, abatido, magro, nas últimas. Achou melhor não falar nada. Deixou as flores que levara em uma mesa de canto, só estavam os dois. Olhou novamente para aquele homem de olhar longínquo, tão débil, e não pode deixar de lembrar de todos aqueles anos passados. Foram muito amigos, embora ultimamente a vida os tenha colocado em caminhos muito diferentes. O moribundo ali, atirado para morrer, que ironia, sempre fora um homem de espírito positivo, um otimista inveterado, um sonhador até. Já ele não. Era tido como 'pessimista', havia até quem dissesse que era 'agourento'. - É o que dá... ter os pés no chão, não fugir da fria e inexorável realidade, de que valeu todo seu espírito otimista? - pensou. Aquela visita era quase uma vitória. - Nosso time joga na quinta. - disse, quebrando o gelo, mas logo se deu conta da gafe: era domingo, talvez o moribundo não estivesse neste mundo na quinta. O homem na cama não falava nada, apenas acompanhava, através de seus olhos afundados em olheiras, os movimentos do amigo pelo quarto. Não encontrando nada para dizer, o visitante parou em frente à janela e perdeu o olhar no movimento ruidoso da vida lá fora. Era um homem de hábitos.Imaginava que teria de quebrar sua preciosa rotina para ir a um velório, detestava velórios. Bem, se o moribundo morresse durante o dia, estaria trabalhando, era uma bela desculpa. Se fosse à noite, aí nem pensar, via sua novela e depois recolhia-se ao leito; e de madrugada em hipótese alguma saía de casa. Estava decidido, inventaria uma desculpa, mas não arredaria pé de sua tranqüila rotina. Resolveu que já não tinha mais nada a fazer ali; caminhou silencioso até a cama do amigo e inclinou-se lentamente, até seus olhos frios encontrarem o olhar embaçado e patético do doente, aproximou bem o rosto, para que o 'otimista' constatasse o brilho duro daquele olhar. Por alguns segundos mantiveram olhos nos olhos e uma lágrima desceu solitária pela face do moribundo, enquanto a ponta de um sorriso se fez notar nos lábios do visitante. Sentiu uma agradável sensação de vitória, já podia ir embora para o abraço morno de sua rotina. Saiu do quarto, desceu no elevador, atravessou o saguão, sempre pensando se o que fizera era o correto. Sim, sim, era o certo, não podia fraquejar agora. Já estava na rua, distraido por estes pensamentos, quando ao atravessá-la foi colhido por um automóvel. Morreu na hora. No dia seguinte, em seu velório, o caixão jazia solitário na capela mortuária quando o moribundo apareceu em uma cadeira de rodas, conduzido por dois enfermeiros. Um deles, só para carregar o soro. Estacionou, consternado, em frente ao caixão. Fez um sinal com sua mão trêmula e o outro enfermeiro inclinou-se, quase encostando sua orelha na boca do paciente, este então sussurrou com sua voz nas últimas: - Ele esteve lá no hospital ontem. Que tragédia. Sabe, eu pressenti algo ruim. Sim, quando nos despedimos, sei lá... meu coração apertou, me emocionei. Naquele momento eu tive certeza que aquela era a última vez... - traido pela emoção, começou a chorar. Encontrou forças ainda para dizer suas últimas palavras: - Sentirei saudades...

Nenhum comentário: