terça-feira, 9 de abril de 2019

A PANTERA DO PORÃO - trecho do livro



Ao sair da residência pela manhã, Amanda não atalhava mais pela garagem, acesso lógico, rápido e seguro a seu carro. Não. Agora ia para frente do imóvel e ficava ali, parada por alguns minutos. Passou a gostar disso. Narizinho empinado, olhos fechados, sentia os mais variados odores produzidos pelas manhãs nervosas da rua – ou do bairro, ou da cidade, quem sabe... cheiros variados lhe chegavam e eram decifrados através de uma nova e delicada astúcia, apesar de seu cabelo negro e molhado estar tão perto e teimar em invadi-la com seu aroma de banho. Eram ares fáceis de traduzir porque corriqueiros, mas parecia que agora vinham acompanhados de algo mais, algo que antes se escondia por detrás daquela rotina comezinha. Traziam consigo suas essências mais secretas, ostentavam forçosamente suas origens antes indecifráveis. Pareciam flores coloridas nascidas dos mais obscuros pântanos e que já não podiam esconder seus berços lamacentos através de suas aparências tão usuais. O lixo de Seu Antero, colocado ali, do outro lado da rua, ela percebia através de suas narinas atentas, trazia o cheiro da morte. Dona Inês, ah... Dona Inês coitada, esposa de Seu Antero, há muito escondida dentro de casa para que sua aparência decadente não suscitasse comentários piedosos – ou seriam maldosos? - dos vizinhos bisbilhoteiros, agora restava desmascarada... doente em estado terminal. Seu Antero parecia exalar o cheiro de uma felicidade disfarçada, comedida, mas latente, só percebida por quem pode descortinar o tênue odor da sutileza. Arlete, da casa mais adiante, espia através da cortina e até mesmo a abre com seus dedos um pouco trêmulos, gerando uma pequena fresta, aventurando-se a uma paisagem mais abrangente da rua. O esmalte que recobre suas unhas arruinadas é caro, sim é de marca. Amanda tenta lembrar da griffe, mas desiste. A vizinha fixa seu olhar na mulher de vestido negro do outro lado da rua, que feito uma estátua, permanece imóvel e de olhos fechados. Arlete mora com a irmã, o cunhado e os sobrinhos; nunca se casou, sempre teve medo. Medo de tudo, agora percebia Amanda. A decrepitude precoce que o esmalte fino tentava atenuar, em vão, era percebida pelas narinas acuradas não sem uma dose de piedade. Os pneus do carro de Augusto, que saia sempre rápido de casa, também se deixavam sentir. Augusto o metido a comedor. Quanto mais acompanhado por belas mulheres, mais só... pelo cheiro da borracha misturada no asfalto, ela percebia que o problema do vizinho garanhão é que ele morava nas mulheres e não nele mesmo. Vivia em função de aparências, de agradar, de ser o bom em alguma coisa para poder mostrar, abanar, chacoalhar em frente à presa feito o guizo de uma cascavel. Era alguém destinado à infelicidade, mas nunca percebera a armadilha que montara para si próprio, pobre Augusto... era até um cara bonito, mas vazio, um sujeito lapidado para ser explorado por aproveitadoras, nada mais. Ops! Chega de sentir pena! Abriu os olhos e ficou feliz, pois mesmo com eles fechados podia enxergar, e muito bem! Ah, os cheiros... Ufa! Hora de ir para o trabalho. Andou rumo a garagem de forma graciosa, um leve sorriso nos lábios pintados de vermelho... vermelho, vermelho... sim, o porão. Na volta daria um jeito, limparia a sangueira, chão, paredes; a pantera satisfeita a dormir em seu canto, protegida pela escuridão. Era bom remover aquele sangue todo, mas sabia que suas marcas continuariam lá imersas no negrume, as manchas seguiriam irremovíveis e indeléveis, os sinais de um crime que ela amava, que a fazia feliz, que lhe proporcionava aquele andar gracioso – agora sabia – aquele sorriso maroto, aquele olhar irresistivelmente sedutor, tudo vinha de lá... das trevas...     

As pílulas da manhã.  Aqueles remédios sem o qual nem conseguiria ir para o trabalho. Aquela depressão horrorosa; por que a vida teimava em acordá-lo todas as manhãs? Cássio estava um pouco irritado. O ramerrão, o ramerrão de sempre, perpétuo. A roda que não parava. Agora, pelo menos, uma novidade... uma novidade a dançar em sua mente cansada, algo a acenar qualquer coisa, como algo vestido com o véu de  um sorriso falso a enganá-lo mais uma vez. Sempre era enganado, nada durava até o final do dia quando seja lá o que for era devorado por sua tristeza. Daí mais pílulas. Era um cara triste, só fingia não ser. Ninguém na delegacia nunca suspeitara de nada; que bom. Pois tinha pouca vida fora dela. Tinha pouca vida dentro dele, e fora dele, ou seja lá para onde olhasse. Ensaiava um sorriso em frente ao espelho antes de sair de casa; não foram poucas as vezes em que precisou esculpi-los em pedra. Ah, essa coisa horrorosa que saía pra rua com ele feito um vampiro a lhe sugar o sangue-vida, e que o obrigava a tomar o café na padaria para que as conversas idiotas de seus freqüentadores lhe lembrassem que vivia num planeta imbecil. E que deveria seguir adiante, porque tudo e todos lhe diziam isso... Quem sabe agora, com algo novo e inesperado, não surgissem novas perspectivas, talvez mentirosas, vá lá..., quem sabe algo para se apaixonar, para se dedicar, algo novo em sua vida. Uma ‘serial killer’ a matar homens pela cidade... quem sabe estava aí algo extraordinário, ora, que tal essa? Onde estaria a predadora agora pela manhã? Quem sabe repousando exausta, entre grandes almofadas de cetim preto, o coração a acalmar-se lentamente da aventura na qual era viciada e que a levaria logo mais a esgueirar-se novamente pela escuridão entre as incômodas e inimigas luzes da rua.  Ou não. Bem poderia ser uma moça corriqueira, com seu trabalho e seus afazeres comuns a encobrir-se convenientemente sob a serena repetição morna dos dias. Nada melhor para que as bem cuidadas unhas, à noite, transformem-se, seguras, em afiadas garras assassinas. Cássio caminhou até uma mesinha de canto e apanhou as fichas sobre as vítimas; examinou-as uma por uma com cuidado. Tratava-se de profissionais bem sucedidos, com bom nível intelectual, o que deixava claro que a assassina – ou seria uma colecionadora de seres humanos vivos? - não era nenhuma estúpida, por certo sabia escolher a presa. E pior. Poderia estar agora em qualquer lugar, pois era invisível, imperceptível, se imiscuía entre a multidão lá fora, possivelmente transformava-se feito um camaleão para poder transitar tranquilamente sob sua pele de ovelha.  O policial foi até a janela e olhou para a rua, seu olhar em seguida perdeu-se no nada; estranhas asas agora levavam seu pensamento insistentemente para mundos sinistros, obscuros, onde reinava absoluto um enigmático sorriso de mulher... 




No trabalho, Amanda sentia-se mais suave. Tudo que emanava dela era mais tênue, percebeu que nem precisava dar mais ordens, pelo menos não da forma usual, bastava um olhar acompanhado de um ensaio de sorriso e... pimba! Só faltavam jogarem-se aos seus pés. Os funcionários percebiam e comentavam sobre o olhar cobiçoso da patroa, que até então nunca se fizera perceber, ou mesmo, quem sabe, este surgira recentemente como uma novidade inesperada. Uma autoridade estranha e perturbadora vinha também naquele olhar, já havia quem dissesse que sentia um calafrio no corpo quando atingido por aquele par de olhos negros. Sim, todos notaram uma transformação na chefa, mas era difícil traduzir o que sentiam. A promessa de algum tipo de aventura que aqueles olhos deixavam transparecer ‘mexia’ com os homens da firma, e perturbava as mulheres. A vivacidade no rosto, que até então era de uma neutralidade absolutamente comum, não vinha acompanhada de explicações. A mulher transitava pela empresa sem fazer barulho, tinha preferência por roupas pretas, usava saias mais curtas, a pintura no rosto era discreta, mas perturbadoramente insinuante. Sua presença mansa sempre era notada. Seu sorriso fazia as libidos entrarem em ebulição, sua voz adquirira um tom discretamente melodioso e confiante, sem ser melosa. Quando se recolhia à sua sala já não a deixava aberta, como antes, agora fechava a porta. Por quê? Que estranhas conjurações não eram permitidas aos olhos dos leigos e ingênuos funcionários? Eles coçavam a cabeça, comentavam coisas, morriam de curiosidade. Que demônios seriam evocados naquela intimidade silenciosa para sinistras orgias? Que poderes satânicos, afinal, surgiriam do abissal silêncio?    Ah, que estranha bruxaria... de quais caldeirões, quais malditas ervas se misturaram em demoníaca ebulição para que aquela mulher mudasse assim? Que mandinga era essa? Todos tinham perguntas e ela um segredo. Todos a notavam, todos a desejavam, porém era bom não aproximar-se sem o sinal de acasalamento, estava claro que sobraria um coração dilacerado, e com certeza não era o dela.   

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