Ao sair da residência pela manhã, Amanda não atalhava mais
pela garagem, acesso lógico, rápido e seguro a seu carro. Não. Agora ia para
frente do imóvel e ficava ali, parada por alguns minutos. Passou a gostar
disso. Narizinho empinado, olhos fechados, sentia os mais variados odores
produzidos pelas manhãs nervosas da rua – ou do bairro, ou da cidade, quem
sabe... cheiros variados lhe chegavam e eram decifrados através de uma nova e
delicada astúcia, apesar de seu cabelo negro e molhado estar tão perto e teimar
em invadi-la com seu aroma de banho. Eram ares fáceis de traduzir porque
corriqueiros, mas parecia que agora vinham acompanhados de algo mais, algo que
antes se escondia por detrás daquela rotina comezinha. Traziam consigo suas
essências mais secretas, ostentavam forçosamente suas origens antes
indecifráveis. Pareciam flores coloridas nascidas dos mais obscuros pântanos e
que já não podiam esconder seus berços lamacentos através de suas aparências
tão usuais. O lixo de Seu Antero, colocado ali, do outro lado da rua, ela
percebia através de suas narinas atentas, trazia o cheiro da morte. Dona Inês,
ah... Dona Inês coitada, esposa de Seu Antero, há muito escondida dentro de
casa para que sua aparência decadente não suscitasse comentários piedosos – ou
seriam maldosos? - dos vizinhos bisbilhoteiros, agora restava desmascarada...
doente em estado terminal. Seu Antero parecia exalar o cheiro de uma felicidade
disfarçada, comedida, mas latente, só percebida por quem pode descortinar o
tênue odor da sutileza. Arlete, da casa mais adiante, espia através da cortina
e até mesmo a abre com seus dedos um pouco trêmulos, gerando uma pequena
fresta, aventurando-se a uma paisagem mais abrangente da rua. O esmalte que
recobre suas unhas arruinadas é caro, sim é de marca. Amanda tenta lembrar da griffe, mas desiste. A vizinha fixa seu
olhar na mulher de vestido negro do outro lado da rua, que feito uma estátua,
permanece imóvel e de olhos fechados. Arlete mora com a irmã, o cunhado e os
sobrinhos; nunca se casou, sempre teve medo. Medo de tudo, agora percebia
Amanda. A decrepitude precoce que o esmalte fino tentava atenuar, em vão, era
percebida pelas narinas acuradas não sem uma dose de piedade. Os pneus do carro
de Augusto, que saia sempre rápido de casa, também se deixavam sentir. Augusto
o metido a comedor. Quanto mais acompanhado por belas mulheres, mais só... pelo
cheiro da borracha misturada no asfalto, ela percebia que o problema do vizinho
garanhão é que ele morava nas mulheres e não nele mesmo. Vivia em função de aparências,
de agradar, de ser o bom em alguma coisa para poder mostrar, abanar, chacoalhar
em frente à presa feito o guizo de uma cascavel. Era alguém destinado à
infelicidade, mas nunca percebera a armadilha que montara para si próprio,
pobre Augusto... era até um cara bonito, mas vazio, um sujeito lapidado para
ser explorado por aproveitadoras, nada mais. Ops! Chega de sentir pena! Abriu
os olhos e ficou feliz, pois mesmo com eles fechados podia enxergar, e muito
bem! Ah, os cheiros... Ufa! Hora de ir para o trabalho. Andou rumo a garagem de
forma graciosa, um leve sorriso nos lábios pintados de vermelho... vermelho,
vermelho... sim, o porão. Na volta daria um jeito, limparia a sangueira, chão,
paredes; a pantera satisfeita a dormir em seu canto, protegida pela escuridão.
Era bom remover aquele sangue todo, mas sabia que suas marcas continuariam lá
imersas no negrume, as manchas seguiriam irremovíveis e indeléveis, os sinais
de um crime que ela amava, que a fazia feliz, que lhe proporcionava aquele
andar gracioso – agora sabia – aquele sorriso maroto, aquele olhar
irresistivelmente sedutor, tudo vinha de lá... das trevas...
As pílulas da manhã.
Aqueles remédios sem o qual nem conseguiria ir para o trabalho. Aquela
depressão horrorosa; por que a vida teimava em acordá-lo todas as manhãs?
Cássio estava um pouco irritado. O ramerrão, o ramerrão de sempre, perpétuo. A
roda que não parava. Agora, pelo menos, uma novidade... uma novidade a dançar
em sua mente cansada, algo a acenar qualquer coisa, como algo vestido com o véu
de um sorriso falso a enganá-lo mais uma
vez. Sempre era enganado, nada durava até o final do dia quando seja lá o que
for era devorado por sua tristeza. Daí mais pílulas. Era um cara triste, só
fingia não ser. Ninguém na delegacia nunca suspeitara de nada; que bom. Pois
tinha pouca vida fora dela. Tinha pouca vida dentro dele, e fora dele, ou seja
lá para onde olhasse. Ensaiava um sorriso em frente ao espelho antes de sair de
casa; não foram poucas as vezes em que precisou esculpi-los em pedra. Ah, essa
coisa horrorosa que saía pra rua com ele feito um vampiro a lhe sugar o
sangue-vida, e que o obrigava a tomar o café na padaria para que as conversas
idiotas de seus freqüentadores lhe lembrassem que vivia num planeta imbecil. E
que deveria seguir adiante, porque tudo e todos lhe diziam isso... Quem sabe
agora, com algo novo e inesperado, não surgissem novas perspectivas, talvez
mentirosas, vá lá..., quem sabe algo para se apaixonar, para se dedicar, algo
novo em sua vida. Uma ‘serial killer’
a matar homens pela cidade... quem sabe estava aí algo extraordinário, ora, que
tal essa? Onde estaria a predadora agora pela manhã? Quem sabe repousando
exausta, entre grandes almofadas de cetim preto, o coração a acalmar-se
lentamente da aventura na qual era viciada e que a levaria logo mais a
esgueirar-se novamente pela escuridão entre as incômodas e inimigas luzes da
rua. Ou não. Bem poderia ser uma moça
corriqueira, com seu trabalho e seus afazeres comuns a encobrir-se
convenientemente sob a serena repetição morna dos dias. Nada melhor para que as
bem cuidadas unhas, à noite, transformem-se, seguras, em afiadas garras
assassinas. Cássio caminhou até uma mesinha de canto e apanhou as fichas sobre
as vítimas; examinou-as uma por uma com cuidado. Tratava-se de profissionais
bem sucedidos, com bom nível intelectual, o que deixava claro que a assassina –
ou seria uma colecionadora de seres humanos vivos? - não era nenhuma estúpida,
por certo sabia escolher a presa. E pior. Poderia estar agora em qualquer
lugar, pois era invisível, imperceptível, se imiscuía entre a multidão lá fora,
possivelmente transformava-se feito um camaleão para poder transitar
tranquilamente sob sua pele de ovelha. O
policial foi até a janela e olhou para a rua, seu olhar em seguida perdeu-se no
nada; estranhas asas agora levavam seu pensamento insistentemente para mundos
sinistros, obscuros, onde reinava absoluto um enigmático sorriso de
mulher...
No trabalho, Amanda sentia-se mais suave. Tudo que emanava
dela era mais tênue, percebeu que nem precisava dar mais ordens, pelo menos não
da forma usual, bastava um olhar acompanhado de um ensaio de sorriso e...
pimba! Só faltavam jogarem-se aos seus pés. Os funcionários percebiam e
comentavam sobre o olhar cobiçoso da patroa, que até então nunca se fizera
perceber, ou mesmo, quem sabe, este surgira recentemente como uma novidade
inesperada. Uma autoridade estranha e perturbadora vinha também naquele olhar,
já havia quem dissesse que sentia um calafrio no corpo quando atingido por aquele
par de olhos negros. Sim, todos notaram uma transformação na chefa, mas era
difícil traduzir o que sentiam. A promessa de algum tipo de aventura que
aqueles olhos deixavam transparecer ‘mexia’
com os homens da firma, e perturbava as mulheres. A vivacidade no rosto, que
até então era de uma neutralidade absolutamente comum, não vinha acompanhada de
explicações. A mulher transitava pela empresa sem fazer barulho, tinha
preferência por roupas pretas, usava saias mais curtas, a pintura no rosto era discreta,
mas perturbadoramente insinuante. Sua presença mansa sempre era notada. Seu
sorriso fazia as libidos entrarem em ebulição, sua voz adquirira um tom
discretamente melodioso e confiante, sem ser melosa. Quando se recolhia à sua
sala já não a deixava aberta, como antes, agora fechava a porta. Por quê? Que
estranhas conjurações não eram permitidas aos olhos dos leigos e ingênuos
funcionários? Eles coçavam a cabeça, comentavam coisas, morriam de curiosidade.
Que demônios seriam evocados naquela intimidade silenciosa para sinistras
orgias? Que poderes satânicos, afinal, surgiriam do abissal silêncio? Ah, que estranha bruxaria... de quais
caldeirões, quais malditas ervas se
misturaram em demoníaca ebulição para que aquela mulher mudasse assim? Que mandinga era essa? Todos tinham
perguntas e ela um segredo. Todos a notavam, todos a desejavam, porém era bom
não aproximar-se sem o sinal de acasalamento, estava claro que sobraria um
coração dilacerado, e com certeza não era o dela.
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